Presente de um capelão

O começo de minha busca teológica por Deus coincidiu com o fim pavoroso de minha cidade natal, Hamburgo, em 1943. Pode-se dizer que sou um sobrevivente de “Sodoma e Gomorra”. Essa menção não tem nada a ver com a poesia religiosa, mas com uma realidade dolorosa. Quando essa lembrança me vem à mente, me assaltam temor e tremor. […] Nas últimas semanas de julho de 1943, aquela cidade foi destruída pelo fogo provocado por “Sodoma e Gomorra”, nome dado à operação de bombardeio da força aérea britânica. A bomba que esfacelou um de meus colegas, ao meu lado, me poupou de modo indescritível. Naquela noite de morte em massa, eu gritei pela primeira vez por Deus: “Meu Deus, onde tu estás? Onde está Deus?” Durante três anos como prisioneiro de guerra na Escócia e na Inglaterra, procurei uma resposta. Em todas as noites, travei uma batalha com Deus como Jacó, que lutou contra o Anjo do Senhor no Vau de Jaboque. Tratou-se de uma luta contra o lado mais obscuro de Deus, contra sua face abscôndita, contra o “não” de Deus que tivemos que suportar durante a guerra e na miséria do tempo de prisão. Nós escapamos da morte no conflito, mas para cada um que sobreviveu houve centenas que morreram. Nós escapamos do inferno, mas pusemo-nos atrás do arame farpado e perdemos a esperança. […] O meu mundo interior desabou. Eu recolhi meu coração que sangrava dentro de uma carapaça de imperturbabilidade e apatia. Isso foi uma forma de prisão interna para a alma, somada à prisão externa. Uma pessoa pode se tornar tão apática e indiferente que não é mais capaz de sentir nada: nem alegria, nem dor. Então não se vive mais, torna-se como que um morto-vivo.

Em maio de 1945, tivemos que empurrar um veículo no miserável campo de prisioneiros da Bélgica. Eu o fiz calado e sem a menor vontade. De repente, notei que estava entre lindas cerejeiras florescentes. A vida plena “olhou” para mim. Eu caí, quase inconsciente, mas senti a primeira centelha de vida novamente em mim. Na Escócia, trabalhamos na construção de ruas junto com o povo nativo. Eles nos chamavam pelo nome mesmo que nós trouxéssemos em nossas costas apenas números. Eles trataram seus antigos inimigos com uma hospitalidade tão natural, uma solidariedade tão humana que me senti profundamente envergonhado. Por meio deles, fomos transformados de figuras petrificadas em pessoas que novamente podiam sorrir. Então, recebi uma Bíblia como presente de um capelão do exército inglês. Eu não sabia exatamente o que fazer com ela. À noite, li primeiro os salmos de lamentação do Antigo Testamento. Com a leitura do Salmo 39 (v. 3,5,12), me senti tocado[…]28. Isso foi ao fundo de minha alma. Depois, li o Evangelho de Marcos e encontrei a passagem que menciona o grito de morte de Jesus: “Meu Deus, porque me desamparaste?”. Foi naquele momento que pude saber com certeza: “Aí está um que me entende”. […] Eu me tornei tão fascinado por aquela experiência de vida que perdi meu interesse pela Matemática e pela Física. Decidi estudar Teologia para investigar o que é verdadeiro na fé cristã. […] Eu me inscrevi e fui levado em 1946 por um soldado inglês para Norton Camp, que ficava nas proximidades de Nottingham, num lindo parque do Duque de Portland. […] Eu nunca experimentei Deus como opressivo ou alienante, mas sempre como esse lugar espaçoso da liberdade, no qual se pode respirar e ressurgir.

(Jürgen Moltmann, Vida, esperança e justiça, p. 10-12)