S. João da Cruz, Advento, Natal e Epifania de Cristo

No dia 14 de Dezembro, no coração do Advento, a Igreja celebra a Solenidade de S. João da Cruz, presbítero e doutor da Igreja, lendo, na sua «leitura espiritual», dois textos altamente cristológicos do Doutor Místico – «Deus falou-nos por meio de seu Filho» (2 S 22) e «o conhecimento do mistério escondido em Cristo Jesus» (CB 36-37)[1] – que a ajudam, durante o tempo de Advento, na sua preparação espiritual para o Natal do Senhor. Neles se condensa a visão mística do Santo sobre o Advento histórico do mistério da Encarnação do Verbo de Deus e do mistério da Redenção da humanidade, ambos Epifania do amor de Deus pelo mundo. A vida do Santo e os seus escritos convidam a Igreja a contemplar na fé e no amor a Cristo – «Põe os olhos só nele e nele acharás ainda mais do que pedes e desejas» (2 S 22, 5) – e a esperar a Sua vinda sacramental e escatológica com a alma de Maria, que acreditou, concebeu, esperou e deu à luz, «com inefável amor», o nosso Salvador, «o qual a graciosa Mãe num presépio punha».

1. «Uma palavra falou o Pai»

«Havia naquela região uns pastores, que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. O anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu em volta deles, e tiveram muito medo. Disse-lhes o anjo: “Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor. Isto vos servirá de sinal para o identificardes: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”. De repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do Seu agrado”. Quando os anjos se afastaram em direcção ao Céu, os pastores disseram uns aos outros: “Vamos até Belém e vejamos o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer” (Lc 2, 8-15). «Transeamus usque ad Betlehem». «Quem vidistis, pastores?». «Quem vistes, pastores? Quem apareceu na terra?…». «Vimos um recém-nascido e coros de Anjos louvando o Senhor»[2].

O mistério do Natal, da Encarnação do Verbo, «revelação visível do Logos»[3], é a «hora da plenitude»: «Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sob o jugo da Lei e nos tornar seus filhos adoptivos» (Gl 4, 4-5). Et Verbum caro factum est (Jo 1, 14): a encarnação do Filho de Deus é o centro da história humana e da vocação cristã à união com Deus. A espiritualidade sanjoanina, bem como a teresiana, é uma espiritualidade da união da alma com Deus.

«Um instinto de particular afinidade espiritual fê-lo sentir predilecção pelo capítulo 17 do evangelho de S. João. Lê-o ou recita-o de memória constantemente. Nessa página do Evangelho acha condensado o próprio sistema: Jesus homem em oração ao Pai, em plena consciência de unidade trinitária, filial, pede que os seus discípulos e amigos participem nessa mesma filiação, e por ela na unidade que existe entre Pai e Filho»[4].

Jesus é o Advento de Deus e o futuro do homem, porque é Aquele que veio, vem e virá; é o Natal de Deus e a divinização do homem, porque é Aquele que nasceu, nasce e nascerá sempre na fé da Igreja, como Deus-Homem, Deus connosco, Emanuel; é a Epifania de Deus e a glorificação do homem, porque é Aquele no qual Deus viveu, falou, trabalhou, amou, sofreu, morreu e ressuscitou e vive para sempre.

«Vivamos para o Senhor,
Caminhando à luz da fé,
Animados na esperança,
Unidos na caridade»[5].

Numa época como a nossa, de sociedade de consumo, de auto-suficiência humana, de desejo de possuir… a esperança está em crise[6]. «Dum spiro, spero». O homem espera sempre, por sobrevivência, um futuro melhor. Mas, quando não há esperança de vida eterna, cai-se facilmente no desespero: «Onde houver desespero, que eu leve a esperança» (S. Francisco de Assis). O século XX é o século do desespero, porque é o século da morte de Deus e do homem. É necessário estar alguma vez desesperado, sem esperança activa, para descobrir a esperança passiva da força de Deus. A utopia morreu, mas a esperança teologal, a confiança nascida da fé no amor de Deus, origem, meio e fim da nossa esperança, resiste à passagem do tempo. A nossa época necessita do «espírito de sabedoria para conhecer a esperança a que Deus a chama» (Ef 1, 18), a fim de «dar resposta vitoriosa sobre a esperança que a anima» (1 Pe 3, 15).

São João da Cruz elaborou teologicamente pouco a esperança, dedicando-lhe apenas 15 capítulos (3 S 1-15), se comparados com os capítulos dedicados sistematicamente à fé e à caridade, geradoras da esperança. Contudo, a sua palavra de esperança – o seu «Evangelho da esperança» – é bem necessária a um mundo necessitado de ser salvo em esperança. O arco da esperança vai da eternidade à eternidade. Parte de um dom inicial de Deus que se mantém como promessa ao longo da história e do tempo até chegar a uma plenitude parcial na união com Deus, prelúdio da plenitude final, a posse definitiva da glória. Deus, antes de nos criar, predestinou-nos para a glória do céu. Na esperança, «gememos esperando» o cumprimento definitivo desta promessa de salvação e de vida eterna.

«E logo me darias ali, tu, vida minha, aquilo que me deste no outro dia. O que aqui diz a alma que lhe daria logo é a glória essencial… Vejamos que dia seja aquele outro que aqui diz, e que é aquele aquilo que nele lhe deu Deus, e o pede para depois na glória. Por aquele outro dia entende o dia da eternidade de Deus, que é outro que este dia temporal. No qual dia da eternidade predestinou Deus a alma para a glória, e nisso determinou a glória que lhe havia de dar e lha deu livremente sem princípio, ante de a criar. E de tal maneira é já aquilo da tal alma próprio, que nenhum caso nem contraste alto nem baixo bastará a tirá-lo para sempre; mas aquilo para que Deus a predestinou sem princípio virá ela a possuir sem fim. E isto é aquilo que diz lhe deu no outro dia, o qual deseja ela possuir sem fim. E isto é aquilo que diz lhe deu no outro dia, o qual deseja ela possuir já manifestamente em glória» (CB 38, 5-6).

O texto apresenta as verdadeiras dimensões da esperança teologal, a unidade do dom inicial e o resultado final, a contingência histórica, a firmeza e a segurança. A esperança é chegada e partida, estada e movimento, posse e crescimento, eternidade e tarefa no tempo, plenitude e desejo, alegria e gemido. O cristão tem já a glória eterna como coisa sua, mas busca-a e descobre-a progressivamente ao longo da sua vida. «A vocação do homem é a união com Deus»[7].

«Assim como na consumação do matrimónio carnal são dois numa só carne, como diz a divina Escritura (Gn 2, 24), assim também, consumado este matrimónio espiritual entre Deus e a alma, são duas naturezas num espírito e amor, segundo diz S. Paulo, trazendo esta mesma comparação dizendo: O que se junta ao Senhor, faz-se um espírito com ele (1 Cor 6, 17)» (CB 22, 3). «Desde toda a eternidade a alma está destinada a participar, na qualidade de esposa do Filho de Deus, da vida trinitária divina. Para se desposar com ela, o Verbo eterno reveste-se da natureza humana. Deus e a alma serão as duas numa carne»[8].

2. «Que foi o seu Filho»

São João da Cruz, um homem de esperança, não usa, no seu vocabulário, nem o termo «Adviento» («Advento») nem o de «Navidad» («Natal»), nem o de «Epifania». Usa apenas uma vez o adjectivo «navideño», precisamente no vilancico chamado «Navideña». «Do Verbo divino» é a «letrilhla» ou estribilho que ressoava nos conventos onde frei João era superior.

Del Verbo divino
la Virgen preñada
viene de camino:
¿si le dáis posada?[9]

É preciso, pois, dar «pousada» a «Santa Maria, Mãe de Deus», para que ela, «cheia de alegria nos mostre, como aos pastores, o seu Filho primogénito»[10], o «mistério escondido, desde tempos antigos, em Deus», mas, na plenitude dos tempos, revelado a todos os povos: «Os gentios recebem a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho» (Ef 3, 9. 6).

João e os seus confrades acolheram certamente «o Verbo divino» nas suas almas das mãos da Virgem grávida, que, com a plenitude da graça (Lc 1, 28), «os fez exultar de alegria e ficar cheios do Espírito Santo» (Lc 1, 41).

João da Cruz participou da devoção popular e penetrou no coração do mistério do Natal como contemporâneo de Cristo, o Senhor, lado a lado com a Virgem Maria e com o bendito patriarca São José. No dia da Apresentação do Senhor no Templo ou Candelária frei João da Cruz presidia à celebração. Benzeu as velas e organizou-se a procissão. Não aguentou. Adiantou-se, aproximou-se da imagem da Virgem, tirou-lhe o Menino e levou-o durante toda a procissão, representando as ânsias do «bom velho» Simeão. A Virgem certamente que sorria com este novo Simeão e o Menino ainda mais. Intercede por Maria e José e pelo Menino que ia nascer.

João da Cruz foi acusado de «falta de sensibilidade litúrgica»[11] – embora, o Santo vivesse pessoalmente e fizesse viver uma vida intensamente litúrgica[12], falasse da autêntica participação na sagrada liturgia – «não se servir das coisas espirituais (ou litúrgicas, «os bens espirituais são os que servem mais para este negócio da divina união da alma com Deus») só para o sentido, deixando o espírito vazio» (3 S 44, 3) – e tecesse alguns comentários aos atropelos litúrgicos do seu tempo, nomeadamente sobre a maneira de celebrar a Eucaristia (3 S 44, 3) –, e de «falta de sensibilidade encarnacionista»[13], quando se esforçava por encenar quer a representação dramática dos mistérios do Natal, quer a dos «martírios», para imitar a Paixão de Jesus Cristo.

«Do que tratou esta testemunha com o dito Santo P. Fr. João da Cruz conheceu que ele amava muito a Nosso Senhor e andava sempre em oração, agradando a Deus, e assim notava que o seu rosto se acomodava às festas, convencendo-se esta testemunha que, conforme eram as festas e o tempo, assim trazia o afecto em Deus: se era tempo de Paixão de Jesus Nosso Senhor, via-se-lhe o sentimento que disto tinha; se era de Natal, mostrava ternura, e assim nas outras festas»[14].

«Se era de Natal, mostrava ternura». Num dos dias de Natal, frei João arrebatado, tomou o Menino nos braços e começou a bailar e a cantar: «Meu doce e terno Jesus se amores me hão-de matar agora têm lugar». Na liturgia da noite de Natal, a geração eterna do Verbo de Deus, o seu nascimento antes de todos os séculos, antes da aurora, torna-se nascimento temporal na Encarnação do Verbo no seio de Maria. O «berço divino» (o presépio), concebido e predestinado «ad aeternum», é a alma e o ventre de Maria»[15], ou de qualquer fiel em estado de graça[16]. «Este é o meu Filho amado, em quem pus as minhas complacências: Escutai-O» (Mt 17, 5). «Ouvi-O a Ele, porque já não tenho mais fé que revelar, nem mais coisas que manifestar» (2 S 22, 5). O Filho é o revelador único do Pai: «A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está n o seio do Pai, é que O deu a conhecer» (Jo 1, 18). É o «pensamento e a glória do Pai» (S. Gregório Nazianzeno).

3. «E esta fala sempre em eterno silêncio»

«Romance sobre o evangelho In principio erat Verbum, acerca da Santíssima Trindade». «O Verbo era Deus» (Jo 1, 1), a saber, o Verbo é gerado pelo Pai «ab aeterno», desde toda a eternidade. O prólogo do Evangelho de São João é um cântico magnífico a Cristo, a Palavra eterna do Pai, que veio morar entre os homens: «E o Verbo se fez carne e habitou entre nós» (Jo 1, 14). À «unidade de ser» segue-se-lhe a «unidade de vida»: «O Verbo, em Deus vivia, no qual sua felicidade infinita possuía». O Verbo é o primogénito de toda a criação. «O Verbo chama-se Filho», porque «do princípio nascia». «Tu és meu Filho; Eu hoje Te gerei». O Pai declara ter gerado hoje Aquele que era Deus, d’Ele mesmo gerado antes de todos os séculos, para significar que nos recebia em Cristo como filhos adoptivos. Efectivamente, em Cristo, enquanto homem, se compendia toda a natureza humana. No mesmo sentido se diz que o Pai comunica ao Filho o seu próprio Espírito, a fim de que em Cristo alcancemos nós a participação do mesmo Espírito»[17]. «Uma vez baptizado, Jesus saiu da água e eis que os céus se Lhe abriram e viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre Ele. E, uma voz vinda do céu, dizia: Este é o meu Filho muito amado, no qual pus as minhas complacências (Mt 3, 16-17). «Hoje, Cisto é baptizado; desçamos com Ele à água, para podermos subir com Ele à glória. (…) O Espírito dá testemunho da divindade de Cristo aparecendo sobre Ele como um igual»[18]. «A glória do Filho é a que no Pai havia e toda a sua glória o Pai no Filho possuía». O Verbo, o Filho, é «o esplendor da Sua glória e a imagem da sua substância» (Hb 1, 3).

«No princípio morava
o Verbo e em Deus vivia
no qual sua felicidade
infinita possuía.
O mesmo Verbo Deus era
que o princípio se dizia.
Ele morava no princípio
e princípio não tinha.
Ele era o mesmo princípio;
por isso dele carecia.
O Verbo chama-se Filho
que do princípio nascia;
tem-no sempre concebido
e sempre o concebia;
dá-lhe sempre a sua substância
e sempre a tinha.
E assim a glória do Filho
é a que no Pai havia
e toda a sua glória o Pai
no Filho possuía»[19].

«Dum quietum silentium tenerent omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet, omnipotens sermo tuus, Domine, a regalibus sedibus venit» (Sb 18, 14-15). «Quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas e a noite ia a meio do seu curso, então, Senhor, a tua palavra omnipotente desceu do (céu) e do trono real» (2 N 24, 3). «O Eros divino fez descer Deus à terra, forçou-o a deixar as alturas do seu silêncio»[20]. «Deus enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor de todos» (Act 10, 36). «Praestolari in silentio salutare Dei»: «esperar no silêncio a salvação de Deus» (Lam 3, 26).

«Uma palavra falou o Pai, que foi seu Filho, e esta fala sempre em eterno silêncio, e em silêncio há-de ser ouvida pela alma» (D 104).

O Natal é um mistério de «luz para se revelar às nações» (Lc 2, 32). Na escuridão daquela noite de Belém «a luz brilha nas trevas». «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar» (Is 9, 2). A Palavra, dita pelo Pai, no silêncio do Espírito, e no silêncio do universo, é o Verbo feito carne, Deus de Deus e Luz da Luz. «O Verbo era a luz verdadeira que, vindo ao mundo, a todo o homem ilumina. Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, mas o mundo não O conheceu. Veio ao que era Seu e os Seus não o receberam. Mas, a todos os que O receberam, aos que n’Ele crêem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, ele que não nasceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas, sim de Deus» (Jo 1, 9-13).

A noite de Natal tem luz mais do que suficiente para quem quer acreditar; mas, tem também escuridão bastante para quem não quer contemplar nada que brilhe (B. Pascal). O «Senhor de Israel», devendo ser reconhecido por Israel – «o boi conhece o seu dono, e o jumento o estábulo do seu senhor, mas Israel, meu povo, não me conhece» (Is 1, 3), veio a ser por ele rejeitado: «Veio aos seus, mas os seus não o receberam» (Jo 1, 11). «Mas a todos os que o receberam, aos que crêem n’Ele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1, 12). «O Filho de Deus alcançou-nos este alto estado e mereceu-nos este subido posto de poder ser filhos de Deus» (CB 39, 5), «por união de amor» (CB 39, 6).

4. «E em silêncio há-de ser ouvida pela alma»

«Fala sempre em eterno silêncio, e em silêncio há-de ser ouvida pela alma». O silêncio de Deus é o modelo do nosso silêncio humano. Deus faz silêncio para escutar o nosso amor calado, a única linguagem que Ele ouve (Ct 8). É conveniente que haja na alma um profundo silêncio para tão profunda e delicada audição da palavra que Deus fala ao nosso coração na solidão (CH 3, 34). É preciso fazer com que «a memória fique calada e muda, e só o ouvido do espírito em silêncio a Deus, dizendo com o profeta: Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (3 S 3, 5). A solidão e o silêncio são, no dizer do santo, um dos três sinais do recolhimento interior da alma (D 123). «O Verbo chama-se Filho»[21].

O Santo contemplou a unidade do mistério de Cristo na totalidade dos seus mistérios – encarnação, vida, morte, ressurreição –, nos quais se revela ao mesmo tempo Deus ao homem e o homem ao próprio homem (GS 22). Os mistérios de Cristo, no dizer de Edite Stein, «formam um conjunto indivisível», de tal modo que «se entramos num deles, somos conduzidos aos outros»[22]. Na sua contemplação, considerou o mistério do Verbo encarnado feito homem verdadeiro: «E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória» (Jo 1, 14). Ele «viu a sua glória» e admirou a «sabedoria de Deus» (1 Cor 1, 24). Na sua contemplação, acentuou o ser divino de Cristo – Filho de Deus –, e o ser humano do Verbo encarnado.

«Assim como as cavernas são profundas e com muitas cavidades, assim cada mistério que há em Cristo é profundíssimo em sabedoria e tem muitas cavidades de seus juízos ocultos de predestinação e presciência a respeito dos filhos dos homens, pelo que diz logo: Que estão bem escondidas.

Tanto que, por mais mistérios e maravilhas que tenham descoberto os santos Doutores e entendido as almas santas, neste estado de vida, o melhor fica-lhes por dizer e até por entender, e assim há muito que aprofundar em Cristo, porque Ele é como uma mina abundante com muitas cavidades cheias de tesouros, que por mais que afundem nunca lhes encontram fim nem termo, antes em cada cavidade vão encontrando novas veias de novas riquezas cá e lá» (CB 37, 3-4).

A «Santíssima Humanidade de Cristo» era o centro da esperança de São João da Cruz[23]. O Filho de Deus encarnado encarna em si toda a sabedoria divina. O Natal do Verbo de Deus é a plenitude da revelação e da manifestação (epifania) de Deus: «porque, dando-nos, como nos deu o seu Filho, que é uma Palavra sua, não tem outra, tudo nos falou junto e de uma vez nesta só Palavra, e não tem mais que falar» (2 S 22, 3). Não há outro Natal e mais Epifania que a de Cristo. João da Cruz faz falar assim o Pai acerca de Cristo, seu Filho: «ele é toda a minha locução e resposta, é toda a minha visão e toda a minha revelação: o qual, já vos falei, respondi, manifestei e revelei, dando-vo-lo por Irmão, Companheiro e Mestre, Preço e Prémio» (2 S 22, 5). Deus disse, fez e deu nele tudo ao homem: «Acabando de falar toda a fé em Cristo, não há mais fé que revelar, nem haverá jamais» (2 S 22, 7). Tudo o que o homem pode desejar, pedir e receber de Deus já lhe foi dado como «condescendência» divina em Cristo[24]. O que pedimos a Deus, Ele já no-lo deu em seu Filho. Pedir ao Pai outra coisa que não o Filho seria ofender tanto ao Pai como ao Filho: «era notar falta em Deus de que não tinha dado tudo o bastante no seu Filho» (2 S 22, 7). O homem recebe, tem e receberá tudo o que Deus lhe dá em Cristo[25]. Cristo, dom do Pai, é a nossa única esperança de salvação. Esperar de Deus outra revelação e salvação que não a de Cristo seria um erro crasso que «não só faria uma necedade, mas faria agravo a Deus não pondo os olhos totalmente em Cristo, sem querer outra qualquer coisa ou novidade», mas também «faria muito agravo a meu amado Filho, porque, não só naquilo lhe faltaria na fé, mas obrigava-o outra vez a encarnar e passar pela vida e pela morte primeira» (2 S 22, 5).

«Vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo» (Mt 2, 2). Cristo, homem mediador entre Deus e os homens, exerce simultaneamente a função de Revelador, como Palavra, Mestre, Caminho e Exemplo, e a de Esposo, como Amado, Irmão, Companheiro e Salvador. Quando a humanidade procura a verdade, procura o Verbo encarnado, a Verdade, a verdade de Deus e da humanidade, buscada pelos sábios de todos os tempos. «A verdade, rejeitada pela cegueira dos judeus, difundiu a sua luz sobre todos os povos. (…) Desde o Oriente ao Ocidente resplandeceu o nascimento do verdadeiro Rei, já que, por meio dos Magos, os povos do Oriente conheceram a verdade do acontecimento e não ficou oculto ao Império dos romanos»[26]. A humanidade é prefigurada no seu caminho para a fé cristã na figura dos Magos, que guiados por uma estrela se encontraram com a carne da verdade: «Entraram na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O» (Mt 2, 11).

«Vivia neles (os Magos) um desejo puro de alcançar a Verdade, que não se deixa conter nas fronteiras das doutrinas e tradições particulares. Deus é a Verdade e quer manifestar-se a todos aqueles que O buscam com coração sincero; por isso, tarde ou cedo, a estrela tinha que aparecer a esses “sábios”, para os conduzir pelo caminho da Verdade. Por isso, apresentam-se diante da Verdade encarnada e, prostrados ante ela, depõem as suas coroas a seus pés, pois todos os tesouros do mundo não são senão pó em comparação com ela»[27].

 João da Cruz, buscador da Verdade, da «insondável riqueza de Cristo» (Ef 3, 8), aconselhava a meditação e contemplação dos mistérios de Cristo: de Cristo Caminho, exemplo de vida a imitar (1 S 13, 3; 2 S 7); de Cristo Palavra a escutar em fé (2 S 22, 5), devido à sua centralidade na vida cristã (CB 5, 3-4; 7, 4-7; 23, 1; 37, 1). Ele é o «principal amante» da alma (CB 31, 2), que O há-de buscar em fé e amor (CB 1, 11). «Andando a alma tratando e manuseando estes mistérios, merecerá que o amor lhe descubra o que em si encerra a fé, que é o Esposo que ela deseja» (CB 1, 11). O Santo ensina uma aproximação psicológica progressiva ao mistério de Cristo pelos sentidos externos (2 S 11), pela imaginação (2 S 12-16), pelo entendimento (2 S 23) e pela advertência amorosa, a comunhão de fé, de esperança e de amor. A privação de imagens externas (3 S 36, 3) ou internas de Cristo (2 S 12, 3) facilita a «busca da viva imagem dentro de si, que é Cristo crucificado» (3 S 35, 5).

«Olha-o tu bem, que aí acharás já feito e dito tudo isso, e muito mais, nele. Se quiseres que te respondesse eu alguma palavra de consolo, olha a meu Filho, sujeito a mim e sujeitado por meu amor, e aflito, e verás quantas te responde. Se quiseres que eu te declare algumas coisas ocultas ou casos, põe só os olhos nele, e acharás ocultíssimos mistérios, e sabedoria, e maravilhas de Deus, que estão encerradas nele, segundo diz o meu Apóstolo: In quo sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae Dei absconditi. Isto é: no qual Filho de Deus estão escondidos todos os tesouros de sabedoria e ciência de Deus (Col 2, 3). Os quais tesouros de sabedoria serão para ti muito mais altos e saborosos e proveitosos que as coisas que tu querias saber. Que por isso se gloriava o mesmo Apóstolo, dizendo: Que não tinha dado a entender que sabia outra coisa, senão a Jesus Cristo, e a este crucificado (1 Cor 2, 2). E se quisesses também outras visões e revelações divinas ou corporais, olha-o a ele também humanado, e acharás nisso mais do que pensas; porque também diz o Apóstolo: In ipso habitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter. Que quer dizer: Em Cristo mora corporalmente toda a plenitude da divindade (Col 2, 9)» (2 S 22, 6).

5. «Cristo é muito pouco conhecido»

A preocupação do Santo é dar a conhecer a Cristo a todos, mas sobretudo aos espirituais, que pensam conhecê-lo, mas não o conhecem como Ele é, porque «há muito que aprofundar em Cristo» (CB 37, 4).

«Cristo é a “Boa-Nova de valor eterno” (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Hb 13, 8), mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a “profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus” (Rm 11, 33). São João da Cruz dizia: «Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa, que, por mais que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente»[28]. Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a novidade»[29]. Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual. Na realidade, toda a ação evangelizadora autêntica é sempre “nova[30].

«Vejo que Cristo é muito pouco conhecido dos que se têm por seus amigos; pois vemo-los andar a buscar nele seus gostos e consolações, amando-se muito a si, mas não as suas amarguras e mortes, amando-o muito a ele» (2 S 7, 12). «Oh dulcíssimo amor de Deus mal conhecido! O que achou as tuas veias descansou» (D 16).

«Amá-lo muito a ele» é reviver todo o seu mistério com o testemunho da própria vida. Cristo não deve ser apenas «conhecido», no sentido paulino de segui-lo e imitá-lo na sua morte e ressurreição (Fl 3, 10-11), mas também «confessado», com o «sermão da vida».

«Esta tão perfeita ousadia e determinação nas obras poucos espirituais a alcançam… Têm todavia vergonha de confessar a Cristo por obra diante dos homens, tendo respeito a coisas. Não vivem verdadeiramente em Cristo» (CB 29, 8).

Entre os mistérios de Cristo que o Santo mais realça está, em primeiro lugar, o da Encarnação[31], manifestada visivelmente no nascimento de Jesus. É o fundamento do mistério de Cristo e a síntese de todos os seus mistérios. A criação é uma teofania da encarnação. «Porque as (obras) maiores, em que mais se mostrou e em que mais ele (Deus) reparava, eram as da Encarnação do Verbo e mistérios da fé cristã, em cuja comparação todas as demais eram feitas como de passagem, com pressa» (CB 5, 3).

O Verbo fez-se carne para nos comunicar o «ser sobrenatural», isto é, nos fazer filhos de Deus. A Encarnação aparece, no Santo, mais unida ao levantamento da ressurreição gloriosa do que ao aniquilamento da morte de cruz. Neste sentido, «na linha de S. João Evangelista, contempla a encarnação mais como divinização do homem do que humanização de Deus»[32]. Deste modo, Jesus, o Unigénito, o Primogénito de muitos irmãos, é o Primogénito de toda a criatura, tanto na ordem natural, como na ordem sobrenatural[33]: «Só com esta figura do seu Filho as deixou vestidas de formosura, comunicando-lhes o ser sobrenatural; o qual foi quando se fez homem, levantando-o em formosura de Deus e, por conseguinte, a todas as criaturas nele, por se ter unido com a natureza de todas elas no homem. Pelo que disse o mesmo Filho de Deus: Si ego exaltatus a terra fuero, omnia traham ad me ipsum» (Jo 12, 32). Isto é: Se eu for exaltado da terra, levantarei a mim todas as coisas. E assim, neste levantamento da Encarnação de seu Filho e da glória da sua ressurreição segundo a carne, não somente formoseou o Pai as criaturas em parte, mas poderemos dizer totalmente as deixou vestidas de formosura e dignidade» (CB 5, 4). 

No «levantamento da Encarnação» do Filho de Deus fomos «levantados ao estado sobrenatural de filhos de Deus pela graça de Cristo: «O Pai predestinou-nos para sermos Seus filhos adoptivos por Jesus Cristo» (Ef 1, 5). Na Encarnação do Unigénito recebemos a adopção de filhos (Gl 4, 5). A esposa, que descobriu na criação a beleza e a formosura de Cristo, deixa-se agora chagar e enamorar pelo mistério da encarnação do Verbo.

«E esta chaga faz-se na alma mediante a notícia das obras da Encarnação do Verbo e mistérios da fé, os quais, por ser maiores obras de Deus e que maior amor em si encerram que a das criaturas, fazem na alma maior efeito de amor; de maneira que, se o primeiro é como ferida, este segundo é já como chaga feita, que dura. Da qual, falando o Esposo no Cântico dos Cânticos com a alma, disse: Chagaste o meu coração, irmã minha, chagaste o meu coração num dos teus olhos e num cabelo do teu pescoço (4, 9). Porque o olho, significa a fé da Encarnação do Esposo, e o cabelo significa o amor da mesma Encarnação» (CB 7, 8).

As criaturas racionais – «e todos quantos vagam» –, entre elas, o místico poeta, são cátedras que nos ensinam e enamoram de Jesus Cristo: «De ti me vão mil graças referindo, isto é, dão-me a entender admiráveis coisas de graça e misericórdia tua nas obras da tua Encarnação e verdades de fé que de ti me declaram, e sempre me vão mais referindo; porque quanto mais quiserem dizer, mais graças poderão descobrir de ti» (CB 7, 7). «E todos mais me chagam», porque enquanto os anjos me inspiram e os homens de ti me ensinam, de ti mais me enamoram, e assim todas de amor mais me chagam» (CB 7, 8).

Na Encarnação, a mais sublime obra «ad extra» da Trindade, realiza-se a «união» entre Deus e o homem: «Não me tirarás, Deus meu, o que uma vez me deste em teu único Filho Jesus Cristo». No matrimónio espiritual, plenitude da união de amor, o Esposo manifesta os seus mistérios à sua esposa: «comunica principalmente os doces mistérios da sua Encarnação e os modos e maneiras da redenção humana, que é uma das mais altas obras de Deus, e assim é mais saborosa para a alma. (…) embora outros muitos mistérios lhe comunica, só faz menção o Esposo na canção seguinte da Encarnação, como o mais principal de todos» (CB 23, 1). «Para o ver lá cara a cara, e entender ali de raiz as profundas vias e mistérios eternos da sua Encarnação, que não é  a menor parte da sua bem-aventurança. (…) A alma o primeiro que deseja fazer ao chegar à vista de Deus, é conhecer e gozar os profundos segredos e mistérios da Encarnação e as vias antigas de Deus que dela dependem» (CB 37, 1). «Para vir a unir o seu entendimento em Deus, segundo a notícia dos mistérios da Encarnação, como mais alta e saborosa sabedoria de todas as suas obras» (CB 37, 2).

A Encarnação não é um instante, mas um processo vital que culmina na Cruz, momento alto da união com o Pai e da redenção da humanidade (2 S 7, 11). «Ave Crux, spes unica!», «Cristo em vós, a esperança de glória» (Cl 1, 27). Por isso, a Encarnação é apresentada de forma dinâmica, do ponto de vista histórico nos Romances, e do ponto de vista eucarístico no poema a Fonte. Para ele, a Eucaristia prolonga e actualiza a Encarnação, o Jesus histórico, corporalmente presente, o Senhor ressuscitado, que continua humanado. O Santíssimo Sacramento foi o centro da sua vida e celebrava a festa do Corpus Christi com alegria desbordante. Mandava representar e encenar os mistérios do Natal de Cristo nas suas comunidades.

«Celebrava as festas de Nosso Senhor e do Santíssimo com grande devoção e com coisas santas, de propósito, com que entretinha e enternecia os seus frades; assim numa noite do santo Nascimento, estando, estando por reitor do colégio desta cidade (Baeza), o dito padre Fr. João fez que dois dos seus religiosos, sem mudar de hábitos, um representasse a Nossa Senhora e o outro ao senhor S. José, e que andassem por um claustro pequeno que havia no dito convento, buscando pousada. E sobre o que lhes respondiam e diziam os dois que representavam a Maria e a José, tirava o dito santo padre pensamentos divinos que lhes dizia de grande consolação para os religiosos. E desta maneira celebrava as festas»[34]. «As festas do Nascimento e do Santíssimo Sacramento e outras celebrava com particular espírito»[35].

6. «De tal maneira espero»

João da Cruz foi um «homem de esperança» na Providência de Deus: «Oxalá tivesse eu comissão para essa fundação como a tenho para estas, e não esperaria eu muitas andanças, mas espero em Deus que se fará e na Junta farei quanto puder» (Ct 5)[36]. Além disso, viveu a «teologia e a espiritualidade da esperança» próprias do Advento. Nos seus escritos, é frequente a terminologia da esperança[37]. Para ele a esperança é tanto uma das «quatro paixões naturais da alma» que o homem e Deus devem purificar[38] quanto uma das «três virtudes teologais»[39].

Nas «coplas da alma que pena por ver a Deus», o santo canta a sua esperança de vida actual nos seguintes termos: vivendo-e-esperando-e-morrendo, não teme a morte, nem goza a vida, mas espera passar da morte à vida para ver a Deus. O místico vive morrendo por não ver, possuir e gozar a Deus, seu Amado. Tudo é vida, até a morte. Não é uma elegia de algo triste e sombrio, mas uma celebração de esperança, porque «enquanto há vidaesperança». É um canto à esperança de quem se encontra entre a vida e a morte. É um «hino à vida»: «este viver, que será?» (v. 7); «que vida posso ter?» (v. 19); «meu viver lastimável» (v. 30). O «viver sem viver em si» – «em mi eu não vivo já» (v. 4) – é a vivência paulina da vida – «já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» – como resposta ao «amor e entrega» do Amado (Gl 2, 20). Neste sentido, viver é entregar-se por amor a outrem, melhor dito, é viver da vida de Cristo e não vida sua (CB 12, 7-8). O «morrer de não morrer» – «que morro porque não morro» (v. 3) – é o desejo paulino da morte: «Desejo partir para estar com Cristo» (Fl 1, 23), que é um desejo positivo da vida: «Para mim, viver é Cristo e o morrer é lucro» (Fl 1, 21). «Morrer é lucro», a saber, dirá o poeta, «morrer é vida».

«Vivo sem viver em mim
e de tal maneira espero
que morro porque não morro».

É a «ars moriendi charismatica», a arte carismática de ir morrendo diariamente (“quotidier”) de um peregrino, que vive vivendo e morrendo para a plenitude da vida sem morte. A «vida» (v. 1), a «esperança» (v. 2) e a «morte» (v. 3) constituem o leitmotiv da sua «pena por ver a Deus», com a sua inteligência, na «luz de glória», por «possuir a Deus», na sua memória, na «vida eterna», por «gozar de Deus», na «bem-aventurança eterna». A Igreja, esposa de Cristo, espera amorosamente o Esposo, deseja «vê-lo na sua formosura», peregrina para a casa do Pai.

«Em mim eu não vivo já
e sem Deus viver não posso;
pois sem ele e sem mim fico,
este viver, que será?
Mil mortes se me fará,
pois minha mesma vida espero,
Morrendo porque não morro.

É a experiência religiosa cume de um homem que deseja ver a Deus, de um homem que «sem Deus viver não pode», que está ferido pelo amor de Deus, que «morre de amor» (Cânt 2, 5), embora aqui, não se fale de amor, mas tão só de esperança. Não é que viva «sem Deus», mas ainda não vive «com Deus». Por isso, no seu grito profético, sai do monólogo consigo mesmo e dialoga com Deus, rejeita a «necrofilia», a vida como morte, e invoca a «biofilia», a vida como vida.

«Esta vida que eu vivo
é privação de viver,
e assim é continuo morrer
até que viva contigo.
Ouve, meu Deus, o que digo:
Que esta vida não a quero,
Que morro porque não morro.

«O possuir vida própria e independente longe de Deus desespera-o, até causar-lhe a morte. Os substitutos de Deus, que nesta vida pode encontrar, causam-lhe mais ânsias do que satisfação. Para maior desgraça, não acaba de morrer, coisa que lhe permitirá viver em Deus e pôr remédio ao seu mal»[40]. O sentimento de ausência fá-lo padecer a maior morte, e lastimar-se da vida em que persevera – «como perseveras, oh vida, não vivendo onde vives? (CB 8).

«Estando ausente de ti
que vida posso ter
senão morte padecer
a maior que nunca vi?
Lástima tenho de mim,
pois de sorte persevero
que morro porque não morro».

Assim como a morte serviu de alívio à Paixão de Jesus, assim a mesma morte servirá de alívio ao «viver lastimável» de João da Cruz. Canta a vida anfíbia da sua alma que navega entre o seu corpo e Deus (CB 8, 3).

«O peixe que da água sai
ainda de alívio não carece
que na morte que padece
ao fim a morte lhe vale.
Que morte haverá que se iguale
ao meu viver lastimável,
pois se mais vivo mais morro?»

Do «alívio do peixe», de Cristo na sua morte, ao «alívio de ver a Deus» no Sacramento da sua presença real. A Eucaristia é a presença que mantém e anima a ausência: «ai, desditado / daquele que de meu amor fez ausência / e não quer gozar a minha presença». Alívio aparente, por «não poder gozar» e «mais penar», por «ver» e «não ver» como quer, que é um «ver não vendo», de noite, em fé – «aquela viva fonte que desejo / neste pão de vida eu a vejo / embora de noite»[41]–, isto é, «esperança de ver-te».

«Quando penso aliviar-me
de ver-te o Sacramento,
faz-me mais sentimento
o não te poder gozar;
tudo é para mais penar
por não te ver como quero
e morro porque não morro».

Num «são pessimismo teológico em estilo de fria objectividade militar» (Hatzfeld), devido à frustração causada pela não consecução da vida de união tão desejada, goza com a esperança de ver o Senhor, e sofre duplamente porque pode perdê-lo. «A alma que deveras ama a Deus com amor de alguma perfeição, na ausência padece ordinariamente de três maneiras, segundo as três potências da alma, que são entendimento, vontade e memória… Acerca da memória diz que morre, porque, recordando-se de que carece de todos os bens do entendimento, que é ver a Deus, e dos deleites da vontade, que é possui-lo, e que também é muito possível carecer dele para sempre entre os perigos e ocasiões desta vida, padece nesta memória sentimento à maneira de morte, porque vê que carece da certa e perfeita posse de Deus, o qual é vida da alma» (CB 2, 6).

«E se gozo, Senhor,
com esperança de te ver,
em ver que posso perder-te
dobrasse-me minha dor;
vivendo em tanto pavor
e esperando como espero,
morro-me porque não morro»[42].

Cristo, pela sua morte e ressurreição, prometera salvar a alma, sua esposa[43]. O místico, no seu desejo e nostalgia de Deus, com voz feminina de esposa enamorada, pede a Deus a morte, como Elias, que é o mesmo que dizer, pede a Deus a vida, que a liberta da prisão desta sua vida de morte.

«Tira-me desta morte,
meu Deus, e dá-me a vida;
não me tenhas impedida
neste laço tão forte;
olha que peno por ver-te
e meu mal é tão inteiro,
que morro porque não morro!»

Como Jeremias, na sua «lamentação bíblica», assim o poeta, em monólogo consigo mesmo, chora a sua morte e lamenta a sua vida; e o místico, em diálogo com Deus, presente e ausente, pergunta-lhe «quando será quando?», pelo «tempo» da eternidade, «quando» verdadeiramente já viver vida imortal.

«Chorarei minha morte já
e lamentarei minha vida
enquanto que detida
por meus pecados está.
Oh meu Deus, quando será
quando eu diga de veras:
vivo já porque não morro?»

Observe-se o crescendum do «já» inicial – «em mim eu não vivo» (v. 4) – ao «já» final: «vivo porque não morro» (v. 59). O tema é monocorde: de uma vida presente, que é morte (vv. 7-8; 11-13; 29-31), e de uma morte divina, que é vida (vv. 46-47). A esperança impulsiona o movimento poético e místico da morte à vida, a saber, do não-viver ao viver. É um cântico pascal de ressurreição, de vitória da vida sobre a morte.

8. «Espera e volta a esperar»

A expectação do A. T. está orientada para a vinda do Messias. A esperança de Israel «era uma esperança de Cristo». A esperança bíblica dá os seus primeiros passos na história como espera do Messias. A esperança é a virtude do caminho e do tempo. O povo de Israel vivia da esperança messiânica. «Os profetas, que falaram em nome do Senhor, são modelos de sofrimento e de paciência» na espera da vinda do Salvador prometido (Tg 5, 10). A salvação prometida – «o próprio Deus vem salvar-nos» (Is 35, 4) – tornar-se-á realidade com a encarnação do Filho de Deus e o seu nascimento temporal.

Porém, a Paixão e a morte de Jesus na Cruz matou a esperança dos apóstolos: «Nós esperávamos que haveria de redimir Israel» (Lc 24, 21). Com a morte de Jesus na Cruz acabava-se a esperança na sua realeza. Parece que a esperança termina com a morte de Jesus. Mas esperavam segundo a letra das profecias e não segundo o seu espírito[44]. A esperança em Deus é sem limite de tempo (3 S 44, 5). O mistério da Trindade e da Encarnação do Verbo têm uma história de longa espera. A «genealogia de Jesus Cristo, Filho de David» (Mt 1, 1-16), que se lê na missa da Vigília do Natal, é uma síntese de toda a longa história de desejo, expectativa e preparação para a vinda do Messias. A promessa messiânica «estende-se de geração em geração sobre aqueles que o temem». Apesar da incredulidade de muitos, Deus, na sua fidelidade, mantém sempre a sua promessa e, deste modo, tece a história do seu povo com o fio da esperança. A «esperança larga» de Israel era de tal maneira longa que levava ao descrédito nas promessas de Deus e ao escárnio daqueles que «esperavam, e esperavam nelas».

«E porque entendiam muito à letra os ditos e profecias dos profetas e não lhes saíam como esperavam, muitos dos filhos de Israel os tinham em pouco e neles não acreditavam; e tanto assim que chegou a haver entre eles um dito público, quase já como um provérbio, escarnecendo dos profetas. Disso se queixa Isaías dizendo e referindo-se desta maneira: Quem docebit Dominus scientiam? et quem intelligere faciet auditum? ablactatos a lacte, avulsos ab uberibus. Quia manda, remanda, manda, remanda, exspecta, reexspecta, exspecta, reexspecta; modicum ibi, modicum ibi. In loquela enim labii, et lingua altera loquetur ad populum istum. Quer dizer: A quem ensinará Deus a ciência? E a quem fará entender a profecia e a sua palavra? Somente àqueles que já estão apartados do leite e desarreigados dos peitos. Porque todos dizem, a saber, sobre as profecias: promete e volta a prometer; espera e volta a esperar, espera e volta a esperar; um pouco ali, um pouco ali: porque na palavra de seu lábio e noutra língua falará a este povo (28, 9-11). Isaías dá assim claramente a entender que faziam troça das profecias e diziam por escárnio este provérbio: «espera e volta logo a esperar». Dando a entender que nunca se cumpria, porque eles estavam apegados à letra, que é o leite dos meninos, e ao sentido, que são os peitos, que contradizem a grandeza da ciência do espírito. Por isso diz: A quem ensinará a sabedoria de suas profecias? E a quem fará entender a sua doutrina, senão aos que já estão apartados do leite da letra e dos peitos de seus sentidos? Porque estes não as entendem, senão segundo o leite da casca e letra, e os peitos de seus sentidos, pois dizem: Promete e volta a prometer, promete e volta a prometer, espera e volta a esperar, etc… Porque Deus há-de-lhes falar na doutrina da sua boca e não da deles, e noutra língua sem ser nesta sua» (2 S 19, 6).

Do mesmo modo, os discípulos, agarrados à letra e não ao espírito das promessas de Deus, perguntaram a Jesus: «Senhor, faz-nos saber se é agora que restituirás o reino de Israel» (Act 1, 6). O apego ao sentido literal da palavra de Deus induzia o povo de Israel ao engano. As palavras de Deus têm um sentido divino diferente do sentido humano dos homens. «Deus sempre fala nas suas palavras e atende ao sentido mais principal e proveitoso, e o homem pode entender ao seu modo e ao seu propósito o menos principal, e assim, ficar enganado» (2 S 19, 12). Deus prometia-lhe a paz messiânica, e ele entendia e esperava a paz temporal.

«Até o próprio Jeremias, apesar de profeta de Deus, vendo os conceitos das palavras de Deus tão diferentes do comum sentido dos homens, parece que também se alucina nelas e volta-se para o povo, dizendo: Heu, heu, heu, Domine Deus; ergone decepisti populum istum et Jerusalem, dicens: Pax erit vobis; et ecce pervenit gladius usque ad animam? Que quer dizer: Ai, ai, ai, Senhor Deus, porventura enganaste a este povo e a Jerusalém, dizendo: a paz virá sobre vós; e eis agora chega a espada até à alma? (4, 10). É que a paz que Deus prometia era a que havia de haver entre Deus e o homem por meio do Messias que havia de enviar, e eles entendiam a paz temporal. E, por isso, quando tinham guerras e trabalhos, parecia-lhes que Deus os enganara, acontecendo ao contrário do que eles esperavam. E assim diziam, como também diz Jeremias: Expectavimus pacem, et non erat bonum (8, 15). Isto é: Temos esperado a paz, e não há bem de paz (8, 15). Governando-se assim, só pelo sentido literal, era impossível não deixarem de se enganar» (2 S 19, 7).

O Menino haveria de trazer a paz ao mundo: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade» (Lc 2, 14). A paz messiânica seria dada aos discípulos – «a paz esteja convosco» (Jo 20, 19. 26) –, e é dada à Igreja, diz-nos o místico, na contemplação infusa.

«Esteja, pois, cerrado, sem cuidado nem pena, porque Aquele que entrou corporalmente para se juntar a seus discípulos estando as portas fechadas e lhes deu a paz (Jo 20, 19-20) sem eles saber nem pensar que aquilo podia ser, nem como podia ser, entrará espiritualmente na alma, sem que ela saiba nem opere o como, tendo ela as portas das potências, memória, entendimento e vontade, cerradas a todas as apreensões, e enchê-las-á de paz, derramando sobre ela, como diz o profeta, como que um rio de paz, em que lhe tirará todos os receios e suspeitas, perturbações e trevas que a faziam temer que estava ou que ia perdida (Is 48, 18). Não perca o cuidado de orar e espere em desnudez e vazio, que não tardará o seu bem» (3 S 3, 6).

Deus é, em Cristo, para a alma, o sumo bem do mundo: «todas estas coisas é seu Amado em si, e é-o para a ela». Deus é todas as coisas e o bem de todas elas para a alma. Quando a alma se une com Deus sente que todas as coisas lhe são Deus (CB 14, 5). Na verdade, o Amado, que nos feriu de amor e partiu, esconde-se no presépio interior da nossa alma, para que o busquemos, não fora, onde não o encontramos, mas dentro: “Deus está escondido na alma, aí o há-de buscar com amor o bom contemplativo, dizendo: Aonde te escondeste?» (CB 1, 6).

«Oh! pois, alma formosíssima entre todas as criaturas, que tanto desejas saber o lugar onde está o teu Amado, para o buscares e te unires com ele, já se te disse que tu mesma és o aposento onde ele mora, o retiro e esconderijo onde está escondido; que é coisa de grande contentamento e alegria para ti ver que todo o teu bem e esperança está tão perto de ti, que está em ti, ou para melhor dizer, tu não podes estar sem ele. Procurai, diz o Esposo, que o reino de Deus está dentro de vós (Lc 17, 21). E o seu servo o apóstolo S. Paulo: Vós, diz, sois templo de Deus (2 Cor 6, 16)» (CB 1, 7).

8. «Esperança de Cristo»

As profecias, que falavam espiritualmente de Cristo, deviam ser lidas no sentido espiritual e, de maneira nenhuma, de modo temporal. É tudo uma questão de exegese e de hermenêutica bíblica.

«Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz”. O seu poder será engrandecido numa paz sem fim, sobre o trono de David e sobre o seu reino, para o estabelecer e consolidar por meio do direito e da justiça, agora e para sempre. Assim o fará o Senhor do Universo» (Is 9, 6-7).

A esperança messiânica – e da paz messiânica – devia ser lida e entendida no sentido espiritual e não literal da palavra de Deus. Deste modo, o nascimento do Messias davídico, a sua vida, a sua morte, o seu reino, a sua obra de salvação, só podem ter uma leitura espiritual, e nunca literal, porque «a letra da profecia mata a Cristo e só o espírito lhe dá vida».

«Porque quem deixará de se confundir e errar, se se atar à letra da profecia de David sobre Cristo, em todo o salmo 71, e sobretudo onde diz: Et dominabitur a mari usque ad mare, et a flumine usque ad terminos orbis terrarum (v. 8). Isto é: Assenhorear-se-á desde um mar até ao outro mar, e desde o rio até aos confins da terra; e também onde diz: Liberabit pauperem a potente, et pauperem, cui non erat adiutor (ibi., 12); que quer dizer: Livrará o pobre do poder do poderoso, e ao pobre que não tinha ajudante; vendo-o depois nascer em baixo estado, viver em pobreza e morrer na miséria, e que não só não se assenhoreou temporalmente da terra enquanto viveu, mas ainda se sujeitou a gente baixa e morreu sob o poder de Pôncio Pilatos, e que não só não livrou os seus discípulos pobres das mãos dos temporalmente poderosos, mas os deixou matar e perseguir por seu nome?» (2 S 19, 7).

Com fundamento nas autoridades da sagrada Escritura, este homem de esperança apresenta-nos um método para ler no sentido autêntico a Palavra de Deus, e interpretar espiritualmente toda a Bíblia ou qualquer um dos seus textos. Só o homem espiritual está capacitado para entender espiritualmente tudo o que Deus revela na casca da letra. A morte de Cristo, na óptica desenvolvida pelo autor, ficou a dever-se a uma leitura errada, porque meramente humana e temporal, da Palavra de Deus.

«E era que estas profecias deviam entender-se espiritualmente de Cristo, segundo este sentido eram veracíssimas; porque Cristo, não só não era senhor da terra, mas do céu, pois era Deus. E aos pobres que o haviam de seguir, não só os havia de redimir e livrar do poder do demónio, que era o potente contra o qual nenhum ajudador humano tinham, mas os havia de fazer herdeiros do reino dos céus.

E assim, Deus falava de Cristo e dos seus seguidores segundo o principal que eram o reino eterno e a liberdade eterna; e eles entendiam-no a seu modo, do menos principal, o senhorio e a liberdade temporal, do qual Deus faz pouco caso, pois diante de Deus não é reino nem liberdade. Donde, cegando-se eles com a baixeza da letra e não entendendo o espírito e a verdade dela, tiraram a vida ao seu Deus e Senhor, segundo o que disse S. Paulo: Qui enim habitabant Ierusalem, et principes eius, hunc ignorantes, et voces prophetarum, quae per omne sabbatum leguntur, iudicantes impleverunt. Que quer dizer: Os que moravam em Jerusalém e os seus príncipes, não sabendo quem era nem entendendo os ditos dos profetas, que cada sábado se lêem, julgando-o, acabaram com ele (Act 13, 27).

Até mesmo os discípulos de Jesus se enganavam na leitura messiânica de Cristo e do seu reino. Julgavam a Jesus e as suas palavras – «as palavras que vos disse são espírito e são vida» (Jo 6, 63 b) – segundo o sentido e não segundo «o Espírito que dá vida» (Jo 6, 63 a).

«E a tanto chegava esta dificuldade de entender os ditos de Deus como convinha, que mesmo até os seus próprios discípulos que com ele haviam andado, estavam enganados; tal como aqueles dois que depois da sua morte iam para o castelo de Emaús, tristes, desconfiados e dizendo: Nos autem sperabamus quod ipse esset redempturus Israel: isto é: Nós esperávamos que havia de redimir a Israel (Lc 24, 21), e entendendo eles também que seria redenção e senhorio temporal. Cristo, nosso Redentor, aparecendo-lhes, repreendeu-os de estultos e tardos e rudes de coração para crer no que tinham dito os profetas (Ibid., 25). E ainda no tempo que ia para o Céu, alguns ainda estavam naquela rudeza e perguntaram-lhe, dizendo: Domine, si in tempore hoc restitues regnum Israel? Isto é: Senhor, faz-nos saber se é agora que vais restituir o reino de Israel (Act 1, 6).

O Espírito Santo faz dizer muitas coisas em que o sentido é outro daquele que os homens entendem, como se vê no que fez dizer a Caifás a respeito de Cristo: Que convinha que um homem morresse para que não perecesse toda a gente (Jo 11, 50). O qual não disse por si: disse-o e entendeu-o com um fim, e o Espírito Santo com outro» (2 S 19, 9).

No pensamento sanjoanino a Palavra de Deus no Antigo Testamento era toda ela uma promessa de Cristo e a oração do povo de Israel condensava-se na petição e na esperança de Cristo: «Irei dizê-lo ao mundo e notícias lhe daria da tua beleza e doçura e da tua soberania». Segundo a revelação, assim a fé, a oração e a esperança.

«Ouvi-O a Ele, porque já não tenho mais fé que revelar, nem mais coisas que manifestar. Que, se antes falava, era prometendo a Cristo; e se me perguntavam, eram as perguntas encaminhadas à petição e esperança de Cristo, em que haviam de encontrar todo bem, como agora o dá a entender toda a doutrina dos evangelhos e dos apóstolos» (2 S 22, 5).

Cristo é a plenitude da revelação de Deus ao homem. Tão forte foi a sua palavra que Deus, em Cristo, emudeceu para sempre. Tendo ficado o Pai como mudo, agora todo o diálogo se dirige a Jesus, seu Filho, e a união de amor é com Cristo, no qual nos unimos filialmente com o Pai e aspiramos o Espírito Santo (CB 39, 5).

«Em dar-nos, como nos deu a seu Filho, que é uma Palavra sua, que não tem outra, tudo nos falou junto e de uma vez nesta só Palavra, e não tem mais que falar. (…) O que antigamente falou Deus nos profetas aos nossos pais de muitos modos e de muitas maneiras, agora, por último, nestes dias no-lo falou no Filho tudo de uma vez (Hb 1, 1). No qual dá a entender o Apóstolo que Deus ficou como mudo e não tem mais que falar, porque o que falava antes em parte aos profetas já o falou no tudo, dando-nos ao Tudo, que é o seu Filho» (2 S 22, 3-4).

«Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). «Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos!» (1 Jo 3, 1). Com a encarnação do Verbo de Deus e o nascimento de Jesus cumpriram-se as esperanças do Antigo Testamento. Agora, a expectação do Novo Testamento, é a espera da vinda do Salvador ao coração de todos os homens, enquanto a história da humanidade se encaminha para a vinda gloriosa do Senhor no fim dos tempos. Em Cristo, Deus e Homem, na sua natureza e na sua obra, realiza-se a tão desejada e esperada união de Deus e da humanidade.

O título «Esposo» tem para o santo uma especial densidade de encarnação, em sentido ontológico de união total com a sua própria natureza humana, e não apenas afectivo de união com a Igreja e com a alma: «o seu mesmo Esposo o Verbo Filho de Deus» (CB 24, 1). Esta união é traduzida pela expressão «o seu Deus o Verbo seu Esposo» (CB 37, 8). O Santo prefere falar de Cristo segundo a sua Humanidade do que da Humanidade de Cristo (CB 14, 10). Os nomes divinos de Cristo não implicam distanciamento, mas infundem proximidade e familiaridade, como no caso de «Senhor Deus Amado meu».

9. «A esperança larga»

Deus sonha fazer-se homem[45]. Deus faz a sua «grande promessa» de salvar os homens (Gn 3, 15). A divinização de homem, melhor dito, a humanização de Deus é um dos sonhos ancestrais da humanidade (Is 7, 14). Os homens desejam a Deus. Israel espera que o projecto de Deus se realize na sua história. Porém, o Esposo tarda em vir. «Veni Domine, et noli tardare». A esposa como que lhe diz: «Não te tardes, que eu espero» (D 26). A «tardança do Esposo» (Prov 13, 12), que «acudirá a seu tempo» (3 S 2, 15), no «tempo da sua misericórdia» (3 S 44, 5) faz com que a esposa, Israel e a Igreja, no seu amor, reaja e espere aflita o Esposo. Em esperança de fé, a esposa aguarda a aparição do Esposo, sua companhia, para gozar dos seus mistérios em união de amor. «Naquele tempo… não veriam a Deus até que viesse Cristo» (CB 11, 9). Na humanidade de Jesus, Salvador, na sua glória (Jo 1, 14), a esposa, pela «claridade do Filho» pode «ver o Pai», tal como Jesus prometeu e cumpriu: «quem me vê, vê o Pai» (Jo 14, 9).

A criação, o palácio para a esposa, palácio dividido em dois aposentos: um, o de cima, para os anjos; outro, o de baixo, para os homens. Os homens possuíam o Esposo em esperança de fé que Ele lhes infundia, dizendo-lhes, pelos profetas, o projecto da sua encarnação, que viria buscar e salvar a esposa que por ele espera. A salvação está prometida. Está prevista a encarnação de Deus no seio da humanidade, garantia da sua comunhão real da vida de Deus. As promessas messiânicas já são manifestação da condescendência de Deus[46]. Resta que o Emanuel cumpra a sua palavra e a faça carne e tempo e venha morar, comer, e ficar connosco até ao fim do mundo. A Igreja, enquanto esposa de Cristo-homem, é não só encarnação e epifania da condescendência de Deus» (2 S 22, 7), mas também instrumento da mesma (2 S 22, 9). O Esposo Deus será homem e o homem será Deus. A humanização de Deus é o começo da deificação do homem: «por nós e pela nossa salvação desceu dos céus». A condescendência de Deus será a ascensão do homem à vida divina. O Esposo levará ao Pai a sua esposa, a qual, na unidade do Pai e do Filho no Espírito, viverá vida de Deus. Cristo volta para o Pai e leva consigo a humanidade desposada, redimida e divinizada. A esperança do mundo alcança a sua satisfação.

«Os de cima possuíam
o Esposo em alegria,
os de baixo em esperança
de fé que lhes infundia
dizendo-lhes que algum tempo
ele os engrandeceria
e que aquela sua baixeza
ele a levantaria
de maneira que ninguém
já a vituperaria,
porque em tudo semelhante
ele a eles se faria
e viria a eles
e com eles moraria,
e Deus seria homem
e o homem Deus seria
e trataria com eles,
comeria e beberia
e com eles continuo
ele mesmo ficaria
até que se consumasse
este século que corria,
quando se gozassem juntos
em eterna melodia,
porque ele era a cabeça
da esposa que tinha,
à qual todos os membros
dos justos juntaria,
que são o corpo da esposa,
à qual ele tomaria
nos seus braços ternamente
e ali seu amor lhe daria;
e que assim juntos em uno
ao Pai a levaria,
onde do mesmo deleite
que Deus goza, gozaria;
que, como o Pai e o Filho
e o que de eles procedia
um vive no outro,
assim a esposa seria
que, dentro de Deus absorta,
vida de Deus viveria»[47].

A esposa anseia pelo Advento do Esposo, com «suspiros e agonia», «lágrimas e gemidos», porque anseia pela sua «companhia», fim do seu «pranto» e começo da sua «alegria». São os gritos dos «pobres do Senhor» pelo Messias, em total esperança de que o seu desejo se cumprirá» (3 S 19, 13). Quando Jesus anuncia a Boa Nova aos pobres (Mt 11, 3-6), «cumpre-se o seu desejo» (2 S 19, 3). O Amor há-de vir abraçar a esposa – «abraçado com sua esposa» (v. 291) – para ela ser semelhante a ele no amor (vv. 235-240). A Igreja, a esposa que o Pai deu ao Filho para O amar (Rm 3, 77-78), espera no tempo o encontro com o Esposo, o «amor encarnado». Descreve, indirectamente, na espera, o que será o encontro com o Esposo ansiosamente esperado: alegria, acolhimento do enviado, fecundidade, dita.

A esposa não evoca aqui o pecado como o motivo da encarnação, como se o Filho de Deus tivesse vindo apenas para perdoar os pecados do mundo, mas deseja apenas a sua «estada» – «e habitou entre nós» –, a sua presença no meio dos homens. É importante que Deus «esteja com» a humanidade e que a humanidade «esteja com» Deus. O plano de habitar entre os homens era apenas uma promessa que enche os homens de desejos e esperanças, mas que não se realiza por agora. A esposa não sabe «quando» terá lugar o cumprimento de tal promessa. Por isso, consome-se em desejo e «esperança larga». Todas as profecias e esperanças messiânicas do A. T., de uns e de outros, tornam-se aqui súplica ardente. O profeta Isaías, no seu lancinante grito, pretende apressar a vinda do Salvador: «Ah! Se rasgásseis os céus e descêsseis!» (Is 64, 1). Ou ainda: «Derramai, ó céus, o orvalho lá do alto e as nuvens chovam a justiça; abra-se a terra e germine a salvação e com ela floresça a justiça» (Is 45, 8). O centro da esperança é Cristo, o Esposo que a esposa deseja para gozar da sua presença. «O Espírito e a Esposa dizem: “Vem”. E cada um dos fiéis repete: “Vem, Senhor, Jesus!”» (Ap 22, 17-20).

«Com esta boa esperança
que de cima lhes vinha,
o tédio de seus trabalhos
mais leve se lhes fazia;
mas a esperança larga
e o desejo que crescia
de gozar com seu Esposo
contínuo os afligia;
pelo qual com orações,
com suspiros e agonia,
com lágrimas e gemidos
lhe rogavam noite e dia
que já se determinasse
a dar-lhes sua companhia.
Uns diziam: “oh se fosse
no meu tempo o alegria!”
Outros: “acaba, Senhor;
ao que hás-de enviar envia!”.
Outro: “oh se já rompesses
esses céus, e veria
com meus olhos que baixasses,
e meu pranto cessaria!”
“Regai, nuvens do alto,
que a terra o pedia,
e abra-se já a terra
que espinhas nos produzia
e produza aquela flor
com que ela floresceria!”
Outros diziam: “oh ditoso
o que em tal tempo seria
que mereça ver a Deus
com os olhos que tinha
e tratá-lo com suas mãos
e andar em sua companhia
e gozar dos mistérios
que então ordenaria!”»[48].

A «longa esperança» dos justos – «Dias virão, em que cumprirei a promessa que fiz à casa de Israel e à casa de Judá: Naqueles dias, naquele tempo, farei germinar para David um rebento de justiça» (Jr 33, 14) – culmina com o velho Simeão, que «esperava a consolação de Israel» (Lc 2, 25-35), e com a profetisa Ana, que «falava do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (Lc 2, 36-38). Simeão é a figura da esperança «pura e inteira» em Deus (3 S 7, 1; 12, 2), de quem levantou os olhos para Deus (2 N 21, 7-8). Simeão é o protótipo da espera amorosa da Igreja esposa do Antigo Testamento: «Meus olhos viram a salvação, que oferecestes a todos os povos: Luz para se revelar às nações e glória de Israel, vosso povo» (Lc 2, 30-32).

Israel recebeu a promessa divina da salvação e transmitiu-a de geração em geração. Existiu uma continuidade orante, uma esperança firme, ao longo da história de Israel: «Nestes e noutros rogos havia passado grande tempo». Mas na aurora da plenitude dos tempos, cresceu a esperança e o amor fez intensificar a oração: «Nos últimos anos o fervor muito crescia». «Muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não o ouviram» (Lc 10, 24). De facto, ver o Salvador, ouvir as suas palavras de vida eterna e ser por Ele redimidos, foram os anseios do povo de Israel ao longo dos séculos que precederam o nascimento de Cristo. «Esperança de Deus tanto alcança quanto espera». Em Jesus, realizam-se todas as promessas de Deus e todas as esperanças do povo de Israel e de toda a humanidade. A esperança de Maria e de José é cumprida no Natal do Salvador: «Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor» (Lc 2, 10-11).

10. «A oração e a esperança»

O Santo associa sempre à «oração» a «esperança»: «Não nos resta em todas as nossas necessidades, trabalhos e dificuldades, outro meio melhor e mais seguro do que a oração e a esperança de que ele proverá pelos meios que ele quiser» (2 S 21, 5). O Senhor está perto. «Venite, adoremus». A «oração sanjoanina», aliás, como toda a oração cristã, é sempre de «advento» – «Adveniat regnum tuum» (CH 1, 28) –, porque é sempre uma «oração teologal», uma «esperança do Reino»: «Nunca te canses de falar do Reino / nunca te canses de construir o Reino, / nunca te canses de discernir o Reino, / nunca te canses de acolher o Reino, / nunca te canses de esperar o Reino» (Pedro Casaldáliga). «Não levando a alma outro arrimo à oração senão a fé, a esperança e a caridade» (D 123). Na verdade, «Deus só olha à fé e pureza de coração de quem ora» (3 S 36, 1). «A ausência do Amado causa contínuo gemer» (CB 1, 14). «Ele também ao gemido dela vem ferido de amor por ela; porque nos enamorados a ferida de um é de ambos, e um mesmo sentimento têm os dois» (CB 13, 9).

Deus compadece-se diante de tantos pedidos e esperanças e concede-lhe ver, no Espírito Santo, a «consolação de Israel», o «dia da salvação» (2 Cor 6, 2). Ele «viu a vida», que é «a luz dos homens» (Jo 1, 4). A actuação do Espírito Santo no Antigo Testamento vem recapitulada na sua acção no velho Simeão. De facto, é o Espírito quem o faz esperar, quem reza n’Ele, e quem lhe responde segundo a vontade de Deus. A «palavra do Espírito Santo» é promessa de «que a morte não veria / até que a vida viesse / que de cima descia». Os braços que acolhem o Verbo Esposo é o abraço da Igreja esposa ao Esposo.

«Em estes e outros rogos
muito tempo passado havia;
porém nos últimos anos
o fervor muito crescia,
quando o velho Simeão
em desejo se acendia,
rogando a Deus que quisesse
deixá-lo ver esse dia.
E assim o Espírito Santo
ao bom velho respondia
que lhe dava a sua palavra
que a morte não veria
até que a vida viesse
que de cima descia,
e que ele em suas próprias mãos
ao mesmo Deus tomaria
e o teria nos seus braços
e consigo abraçaria»[49].

Soou a hora de Deus e nasceu o Amor. A «lei dos amores perfeitos» requer a «igualdade de amor». Deus quer uma comunhão igual e plena com a humanidade[50]. O Amante faz-se semelhante à amada – «em tudo excepto no pecado» (Hb 4, 15) – para ela ser no Amado transformada[51]. «A Palavra eterna do Pai, assumindo a nossa débil condição humana, fez-se semelhante aos homens»[52]. «O homem é semelhante a Deus, porque Deus é semelhante ao homem» (Clemente de Alexandria). A Encarnação de Deus é, pois, a synkatábase, a condescendência ou descida de Deus até ao homem para o salvar, engrandecer e glorificar. A Encarnação é o abraço do Esposo e da esposa. O projecto da redenção da esposa realizar-se-á na plenitude dos tempos com o consentimento de Virgem-Mãe. O «sim» de Deus à humanidade, em Maria, é a encarnação de Cristo, e o «sim» da humanidade a Deus, em Maria, é a salvação da humanidade, «recapitulada em Cristo» (Ef 1, 10). Assim começa o seu De Encarnatione.

«Já que era chegado o tempo
em que fazer-se convinha
o resgate da esposa
que em duro jugo servia
debaixo daquela lei
que Moisés dado lhe havia
o Pai com amor terno
desta maneira dizia:
Já vês, Filho, que a tua esposa
à tua imagem feito havia,
e no que a ti se parece
contigo bem convinha;
mas difere na carne,
que em teu simples ser não havia.
Nos amores perfeitos
esta lei se requeria,
que se faça semelhante
o amante a quem queria;
que a maior semelhança
mais deleite continha;
o qual, sem dúvida, na tua esposa
grandemente cresceria
se te visse semelhante
na carne que tinha»[53].

O Filho, cheio de entusiasmo, dá o seu “sim” ao Pai, e vem dar vida à esposa e devolvê-la ao Pai. Não só deseja a encarnação, a humanização, viver vida humana para se fazer semelhante à esposa, mas também morrer por ela para a resgatar do pecado original. Participando da morte e ressurreição do Esposo, a esposa tem a possibilidade de viver no interior da vida eterna trinitária com o Deus Amor. O segundo motivo da Encarnação é a redenção da esposa na árvore da cruz: «Ali comigo fostes desposada» (CB 23). Este desposório da redenção do homem é obra do «amoroso Pastor e Esposo da alma» (CB 22, 1). É a melhor «teologia da libertação» da alma: «Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que visitou e redimiu o sue povo e nos deu um salvador poderoso na casa de David, seu servo… graças ao coração misericordioso do nosso Deus que das alturas nos visita como sol nascente, para iluminar os que vivem nas trevas e na sombra da morte e dirigir os nossos passos no caminho da paz» (Lc 1, 67. 79). Deus promete um Salvador para destruir o pecado e restituir a graça à humanidade.

«Minha vontade é a tua
– o Filho lhe respondia –
e a glória que eu tenho
é tua vontade ser minha;
e a mim convém-me, Pai,
o que tua alteza dizia,
porque por esta maneira
tua bondade mais se veria;
ver-se-á tua grande potência,
justiça e sabedoria.
Irei dizê-lo ao mundo
e notícias lhe daria
de tua beleza e doçura
e de tua soberania.
Irei buscar a minha esposa
e sobre mim tomaria
suas fadigas e trabalhos
em que tanto padecia;
e para que ela tenha vida
eu por ela morreria
e tirando-a do lago

a ti ta devolveria»[54].

11. «A Trindade de carne ao Verbo vestia»

Mas este projecto da redenção implica que o projecto da Encarnação ganhe contornos de espaço e tempo: «E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós» (Jo 1, 14). A Anunciação do Anjo à Virgem Maria obtém dela o «sim» à realização do mistério da Encarnação, o «faça-se segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). A «filha de Sião», representante do povo de Israel, espera Jesus, o Salvador do seu povo pela remissão dos seus pecados (Lc 1, 77). Maria, «refúgio dos pecadores», «esperou com inefável amor» a vinda do seu Filho: «Deus de tal modo humilhado no ventre de Maria»[55]. «Ela sobressai, entre os humildes e os pobres do Senhor, que d’Ele esperam confiadamente e vêm a receber a salvação» (LG 55). É uma esperança não política, mas religiosa d’Aquele que veio «servir a Deus em santidade» (Lc 1, 75). E o mistério realiza-se: «E o que só tinha Pai já tem também Mãe». É caso para dizer «caro Christi est caro Mariae». «Neste vale de lágrimas, Maria é vida, doçura, esperança nossa» (Salve Rainha), é «sinal de esperança de salvação para todo o povo de Deus peregrino» (LG 68), porque «já possui o que a Igreja deseja e espera ser» (SC 103).

O mistério da encarnação é obra da Trindade: «A Trindade de carne ao Verbo vestia». A Palavra eterna nasce no tempo e no espaço e adquire uma dimensão universal: «Pela sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de alguma maneira a todo o homem»[56]. O Criador do homem fez-se homem, o Criador do mundo é criatura. «Não Se envergonhou de nos chamar irmãos e anunciou o nome de Deus aos seus irmãos» (Hb 2, 11-12). «Teve de assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, a fim de ser um sumo sacerdote misericordioso e fiel no serviço de Deus, para expiar os pecados do povo» (Hb 2, 17). «Há uma só esperança» (Ef 4, 4), mas há esperança para todos: «Levar-vos-ei comigo, para que onde eu estiver, estejais vós também» (Jo 17, 24), e ainda, «na casa de meu Pai há muitas moradas» (Jo 14, 2). Em Maria o sonho de Deus se fazer homem tornou-se realidade pelo poder de Deus (Lc 1, 35). Maria é a morada da Trindade na história. A encarnação do Filho de Deus, o nascimento de Jesus, é um desposório hipostático da natureza divina com a natureza humana na única Pessoa do Verbo. O «esposo que sai do seu tálamo» (Sl 18, 6) é Cristo: «o dulcíssimo Jesus, Esposo das almas fiéis» (CB 40, 7). A esposa é a natureza humana. O tálamo é o ventre de Maria. O amor realiza a união entre ambos.

«Então chamou um arcanjo
que São Gabriel se dizia
e enviou-o a uma donzela
que se chamava Maria,
de cujo consentimento
o mistério se fazia;
na qual a Trindade
de carne ao Verbo vestia;
e embora três façam a obra,
no uno se fazia;
e ficou o Verbo encarnado
no ventre de Maria.
E o que tinha só Pai,
já também Mãe tinha,
ainda que não como qualquer
que de varão concebia,
que das entranhas dela
ele sua carne recebia;
pelo qual Filho de Deus
e do homem se dizia»[57].

O mistério da Encarnação é revelado aos homens como um mistério nupcial. Deus, na loucura do seu amor, enamorou-se do homem. O Verbo entra no mundo abraçando a sua esposa, a natureza humana, que, por sua vez, o abraça nos braços da «graciosa Mãe», que o depõe no presépio. «Quando o sol aparecer no horizonte, vereis o rei dos reis, que procede do Pai, como esposo que sai do seu tálamo»[58]. No Verbo incarnado, Deus e a humanidade, unem-se «numa só carne» (Gn 2, 24) e «num só espírito» (1 Co 6, 17). Jesus é, pela sua encarnação e consequente união hipostática, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Se em Cristo habita toda a plenitude da divindade» (Cl 2, 9), também na divindade habita toda a plenitude da humanidade. A esposa, os Anjos e os homens, celebram o desposório com cânticos de alegria, ao passo que o Esposo, no presépio, geme e chora[59]. João da Cruz gostava de representar, cheio de entusiasmo, o mistério de Natal nos conventos onde era superior.

O Natal do Verbo encarnado é já Páscoa da nossa salvação: «O Verbo de Deus, por quem tudo foi feito, fez-se homem, para, homem perfeito, a todos salvar e tudo recapitular»[60]. Na linha dos Padres da Igreja, a sanjoanina «teologia do Natal» é já um acontecimento soteriológico: «Hoje, nasceu o nosso Salvador» (Lc 2, 11). O Natal é um mistério de humildade: «Ele que era de condição divina não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus; mas despojou-se a Si mesmo tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens» (Fl 2, 6-7). A encarnação é mistério redentor: o Filho desce ao «cativeiro» da esposa para «resgatar» a esposa, a humanidade do lago da condenação do mundo com a «alegria da eternidade prometida»[61]. De facto, Cristo, na sua encarnação, renova o universo: «No mistério do seu nascimento, Aquele que, por sua natureza, era invisível tornou-se visível aos nossos olhos. Gerado desde toda a eternidade, começou a existir no tempo, para renovar em Si a natureza decaída, restaurar o universo e reconduzir ao reino dos céus o homem perdido pelo pecado»[62]. Cristo é a condescendência do Pai feita carne. Nascendo na terra, a sua condescendência foi até à aniquilação (2 S 7, 11), para anunciar a todos a alegria da eternidade prometida e dar aos mortais a esperança do nascimento para o Céu. «Tido pelo aspecto como homem, humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à morte e morte de Cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu o nome que está acima de todo o nome, para que ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na terra e nos infernos e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor para glória de Deus Pai» (Fl 2, 8-11). «Tão profunda é a humildade e a doçura de Deus!» (CB 27, 1).

«Pasmem de alegria
Na terra e nos céus
Vendo a noite – dia
Vendo o homem – Deus»[63].

«Neste estado de vida tão perfeita, a alma anda sempre, interior e exteriormente, como de festa; no paladar do seu espírito traz frequentemente um grande júbilo de Deus, uma espécie de cântico novo, que é sempre novo, envolto em alegria e amor, devido ao conhecimento do seu feliz estado» (CH 2, 36).

12. «A graciosa Mãe… estava em pasmo»

Maria, «movida pelo Espírito Santo» (3 S 2, 10), está «em pasmo», ao contemplar o seu menino a chorar e a humanidade a rir. Algo está a «mudar» na história: o homem a «saltar» de alegria e Deus a «gemer» no presépio. O nascimento de Jesus Cristo é a notícia mais alegre da história, porque é o «dia da salvação» da humanidade, «dia em que é apagada a iniquidade da terra»: «Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor» (Lc 2, 10-11). O mistério da encarnação do Verbo é uma «admirável permuta» de dons entre Deus e a humanidade: «Por Ele resplandece hoje para os homens o mistério da encarnação redentora: a nossa fragilidade humana é assumida pelo Verbo, o homem mortal é elevado à dignidade imortal e, unido a vós em comunhão admirável, torna-se participante da vida eterna»[64]. Entendeu que a encarnação é uma troca de jóias entre o Esposo e a esposa: «o pranto do homem em Deus / e no homem a alegria». «Para nós, herdeiros do pecado, tudo mudou em desbordante alegria e vemos abrir-se o paraíso. A criação – terra e céu – cuja unidade fora desfeita, entoam a nova amizade»[65]. Jesus, que recebeu de nós a tristeza (Mc 14, 34), dá-nos a alegria (Jo 16, 20. 22).

«Comércio admirável,
Que o amor descobria;
Mistério inefável,
Que o Céu nos abriu!»[66].

Na sua liturgia, a Igreja, «festejando o desposório que entre tais dois havia» – entre a natureza divina e humana em Jesus[67], entre Jesus e sua Mãe[68], entre Jesus e a Igreja (CB 30, 5) entre Jesus e a humanidade inteira[69] –, agradece ao Altíssimo o dom inefável da salvação da humanidade pecadora, porque «Deus quer que todos os homens se salvem e conheçam a verdade» (1 Tm 2, 4). «Como um esposo que sai do seu tálamo, em Cristo veio à terra para Se unir em matrimónio com a Igreja, mediante a Encarnação. A esta Igreja, em que haviam de reunir-se os povos pagãos, deu Ele efectivamente o penhor e o dote: o penhor, quando Deus Se uniu ao homem; o dote, quando Se imolou pela salvação do homem. Por penhor entendemos a presente redenção; por dote, a vida eterna. Tais coisas, para os que as viam, eram apenas milagres; para os que as compreendiam, eram mistérios»[70]. Eis o seu De Nativitate Domini.

«Já que era chegado o tempo
em que de nascer havia,
assim como desposado
de seu tálamo saía
abraçado com sua esposa,
que nos seus braços a trazia,
ao qual a graciosa Mãe
num presépio punha
entre uns animais
que na altura ali havia.
Os homens diziam cantares,
os anjos melodia,
festejando o desposório
que entre tais dois havia;
mas Deus no presépio
ali chorava e gemia,
que eram jóias que a esposa
ao desposório trazia;
e a Mãe estava em pasmo
de que tal troca via:
o pranto do homem em Deus
e no homem a alegria,
o qual de um e do outro
tão alheio ser soía»[71].

A espera tornou-se história. O Verbo eterno assume no tempo a natureza humana[72]. Com a encarnação de Cristo, o esperado passou a ser o possuído. «Cristo Jesus enviado ao mundo como verdadeiro mediador entre Deus e os homens… O Filho de Deus, pelo caminho de uma verdadeira Encarnação, veio fazer os homens participantes da sua natureza divina»[73]. A promessa cumpriu-se: «E Deus seria homem»[74]. Agora, que o Filho de Deus já é Filho do homem, o homem já é filho de Deus: «E o homem Deus seria»[75]. A vocação do homem seria a união com Deus[76].

«Enquanto adoramos o nascimento do nosso Salvador, celebramos realmente também o nosso nascimento. Efectivamente, a geração de Cristo é a origem do povo cristão: o Natal da cabeça é também o natal do Corpo. Embora cada um tenha sido chamado num momento determinado, para formar parte do povo do Senhor, e todos os filhos da Igreja sejam diversos na sucessão dos tempos, contudo, a totalidade dos fiéis, nascida na fonte do baptismo, assim como foram crucificados com Cristo na sua paixão, ressuscitados na sua ressurreição, colocados à direita do Pai na sua ascensão, assim também nasceram com Ele neste Natal»[77].

O Reino de Deus já está entre nós, pela irrupção do Divino na história dos homens, que se operou na Incarnação do Filho de Deus. Na totalidade do seu mistério vemos o Amor de Deus Pai que salva a humanidade. Mas o esperado e possuído, pela sua paixão, morte e ressurreição, vive agora em condição de glória. «Já que pelo sangue de Cristo temos uma fundada esperança de entrar no santuário, pelo caminho novo e vivo que Ele nos abriu através do véu, isso é, da Sua carne… continuemos a afirmar a nossa esperança, porque O que fez a promessa é fiel» (Hb 10, 19-20. 23). «A promessa que o Filho nos fez é a vida eterna» (1 Jo 2, 25). «Eu sou a porta; se alguém entrar por Mim, salvar-se-á» (Jo 10, 9). A esperança recomeça no N. T., porque «Jesus é mediador duma aliança mais perfeita, que foi estabelecida sobre melhores promessas» (Hb 8, 6). Quanto maior é o dom de Deus em Cristo, maior é o nosso desejo e a nossa esperança de participar na sua glória. A fé e o amor fazem-nos esperar a «beata pacis visio», a união com o «Senhor da glória» (1 Cor 2, 8). Cristo, a verdadeira esperança, mora no centro da alma.

13. O mistério do Natal

O Natal, ao celebrar a Encarnação do Filho de Deus, assinala o cumprimento da antiga promessa e o início da salvação da humanidade: «Alegrai-vos no Senhor, porque, poucos dias depois da solenidade do Natal de Cristo celebramos a festa da sua manifestação e Aquele que a Virgem dera à luz naquele dia, é hoje reconhecido pelo mundo»[78]. «A ti pertence a realeza desde o dia em que nasceste nos esplendores da santidade; antes da aurora, como orvalho eu te gerei» (Sl 109, 3). O Natal, à luz do mistério pascal, é já Epifania do amor de Deus em Cristo para salvação eterna do mundo (Jo 3, 16), que «foi salvo na esperança» (Rm 8, 24). «A encarnação é “a maior manifestação de toda a teologia” (do Amor de Deus)»[79]. Se, por um lado, o Natal é Epifania, por outro, a Epifania é Natal.

«Não é sem razão que celebramos esta festa (da Epifania) pouco depois do dia do Natal do Senhor, já que os dois acontecimentos se verificaram pelo mesmo tempo, embora com diferença de anos, e pode-se dizer que é também uma festa de Natal que hoje celebramos. No dia de Natal nasceu entre os homens; hoje renasce na manifestação divina. Então deu-O à luz a Virgem; hoje é gerado no mistério. Quando nasceu segundo a natureza humana, Maria, sua Mãe, acolheu-o em seu regaço; agora, gerado segundo o mistério, é envolvido por aquela voz de Deus, seu Pai, que diz: Este é o meu Filho, no qual pus as minhas complacências; escutai-O. A Mãe acaricia docemente o recém-nascido ao seu colo; o Pai oferece ao Filho o seu afectuoso testemunho. A Mãe apresenta-O aos Magos para que O adorem; o Pai revela-O aos povos para que O venerem»[80].

São Paulo fala de um «Natal teológico», como Epifania da graça salvadora de Deus[81]: «Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens… aguardando a ditosa esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo, que Se entregou por nós, para nos resgatar de toda a iniquidade e preparar para Si mesmo um povo purificado, zeloso das boas obras» (Tit 2, 11-14). «Não a alguns homens somente, mas a todos. A todos, com efeito, judeus e gregos, se concede a salvação por meio do Baptismo, oferecendo a todos o Baptismo como um benefício universal»[82].

A sanjoanina «teologia da Epifania» é, como reza a Igreja, a de Cristo, luz das nações e salvador do mundo: «Em Cristo, luz do mundo, revelastes hoje a todos os povos o mistério da salvação e, manifestando-O na nossa natureza mortal, nos renovastes com o esplendor da sua imortalidade»[83]. «A solenidade que celebramos manifesta e revela de muitas formas que Deus assumiu um corpo humano, para que a nossa natureza mortal, sempre envolvida por tantas obscuridades, não perca por ignorância o que por graça mereceu receber e possuir»[84]. «O Pai da imortalidade enviou ao mundo o seu Filho Verbo imortal, que veio ao encontro dos homens para os lavar com a água e o Espírito; e, para os regenerar com a incorruptibilidade da alma e do corpo, insuflou em nós o espírito de vida e revestiu-nos da armadura incorruptível. Portanto, se o homem se tornou imortal, também será divinizado: E se é divinizado pela regeneração do Baptismo na água e no espírito Santo, também será herdeiro com Cristo depois da ressurreição de entre os mortos. Por isso, proclamo com voz de arauto: Vinde, todas as tribos dos povos à imortalidade do Baptismo»[85]. Na Encarnação, a maior epifania do amor de Deus – «teu Esposo, estando em ti, como quem é te faz as mercês» – a humanidade uniu-se com a divindade: «Eu sou teu e para ti e gosto de ser tal qual sou para ser teu e para me dar a ti» (CH 3, 6).

O primeiro motivo da Encarnação é a «ordenação da criação para ser aperfeiçoada e consumada por Cristo»[86]. O segundo motivo da Encarnação é de ordem esponsal, porque desde o princípio Deus destinou a humanidade para a união de amor com Ele e a união amorosa de uns com os outros: «Deus fez-se Filho do Homem para que todos os homens chegasse a ser filhos de Deus»[87]. O terceiro motivo da Encarnação é a libertação do pecado, o qual «foi causa» da vinda de Cristo ao mundo[88]. Neste sentido, o Natal tem já manifestamente um sentido redentor.

«Ao manifestar-se a bondade de Deus nosso Salvador e o seu amor para com os homens, Ele salvou-nos, não pelas obras justas que praticámos, mas em virtude da sua misericórdia, pelo baptismo da regeneração e renovação do Espírito Santo, que Ele derramou abundantemente sobre nós, por meio da Jesus Cristo nosso Salvador, para que, justificados pela sua graça, nos tornássemos, em esperança, herdeiros da vida eterna» (Tt 3, 4-7).

O milagre da Noite de Natal explicita o sentido joanino da Encarnação como luz que brilha nas trevas. «O povo de Israel que andava nas trevas e viu uma grande luz, para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar» (Is 9, 2) O profeta, oito séculos antes do nascimento do Salvador, exortava assim o povo de Israel: «Vinde, caminhemos à luz do Senhor» (Is 2, 5). «A glória de Deus cercou-os de luz» (Lc 2, 9). S. Paulo exorta a Igreja: «Revistamo-nos das armas da luz» (Rm 13, 12). O mistério da Encarnação, enquanto libertação do pecado, relaciona-se com o «mistério do mal».

«O Natal é uma festa do amor e da alegria – eis a estrela para a qual todos se encaminham nos primeiros meses de Inverno. Para os cristãos, e sobretudo para os cristãos católicos, trata-se de algo ainda mais profundo. A estrela condu-los ao presépio em que está deitado o Menino que traz a paz ao mundo. A arte cristã apresenta-o aos nossos olhos em inúmeras e belíssimas imagens, velhas melodias, nas quais ressoa todo o encanto da infância, falam-nos d’Ele»[89]. «Todos, sem dúvida alguma, já fizemos a experiência de uma semelhante alegria de Natal. Porém, o céu e a terra ainda não se uniram. A estrela de Belém é, ainda hoje, uma estrela que brilha numa noite escura. (…) Onde está a paz na terra? Paz na terra aos homens de boa vontade! Mas nem todos são de boa vontade. Precisamente por isso o Filho do Pai Eterno teve que baixar da glória dos céus, porque o mistério do mal envolveu a terra com as suas trevas. As trevas cobriam a terra, e Ele veio como luz que brilha nas trevas, mas as trevas não o receberam. Àqueles que o receberam trouxe luz e paz: a paz com o Pai celeste, a paz com todos os que, como Ele, são filhos da luz e do Pai que está no céu, e a paz profunda dos corações, mas não a paz com os filhos das trevas. Para eles é pedra de escândalo, contra a qual chocam e se despedaçam. Esta é uma verdade dura e séria que não podemos encobrir pelo encanto lírico do Menino de Belém. O mistério da Encarnação e o mistério do mal estão estreitamente ligados. Contra a Luz que desceu do céu, se levanta quanto mais negra e sinistra a negra noite do pecado. (…) Diante do presépio dividem-se os corações. Ele é o Rei dos Reis e o Senhor da vida e da morte. Pronuncia o seu “Segue-me” e quem não é por Ele é contra Ele. Pronuncia-o também para nós, e põe-nos diante dos olhos a escolha entre a Luz e as trevas»[90].

A Igreja, Corpo místico de Cristo, inclui, no dizer de Edite Stein, o unum esse cum Deo, a união com Deus, o ser uma coisa com Deus; o unum esse in Deo, a união em Deus, o ser uma coisa em Deus; e o fiat voluntas tua, o faça-se a tua vontade. «O sentido do mistério da Encarnação é conduzir o homem à união com Deus, desde uma tríplice perspectiva; ser um com Deus, ser um em Deus, e cumprir a vontade de Deus. É este o caminho da salvação e da santidade cristã»[91]. «Deus veio precisamente para nos libertar, para nos redimir: para nos unir consigo e nos unir com os outros, para conformar o nosso querer com o seu»[92]. De facto, a encarnação, enquanto união e desposório da natureza divina com a natureza humana, está ordenada à «união com Deus» e à «união com o homem», isto, é, a humanidade. A encarnação, união divina e humana de Cristo, é o «fundamento necessário da união dos homens com Deus». «Cristo é Deus e homem ao mesmo tempo e quem quiser partilhar a sua vida tem de participar da sua vida divina e humana». A união com a vida de Cristo é uma «união de vontades». Pela sua Encarnação, Cristo veio unir a vontade do homem com a vontade de Deus. E a vontade de Deus sobre a humanidade é o «ser um com Deus», a «união da humanidade com Deus».

«O admirabile commercium! Creator generis humani, animatum corpus sumens, largitus est nobis suam Deitatem. Sim, o Salvador veio ao mundo para esta admirável troca. Deus fez-se Filho do homem, para que os filhos dos homens pudessem tornar-se filhos de Deus. Foi um de nós que rompeu o vínculo filial que nos unia a Deus, um de nós devia uni-lo novamente e expiar o pecado. Não podia ser ninguém da geração antiga, corrompida e bárbara. Um novo rebento, são e puro, devia ser enxertado. Ele tornou-se um de nós; mas mais que isso: fez-se uma só coisa connosco. Eis o mistério admirável do género humano: todos somos uma só coisa. Se assim não fosse, se fôssemos uns justapostos aos outros, seres autónomos e separados, distintos e independentes, a queda de um não se teria traduzido na queda de todos. Então o preço do resgate poderia ser pago e ser-nos atribuído, mas a sua justiça não abundaria sobre os pecadores, não seria possível a justificação. Mas Ele veio para ser connosco un Corpus mysticum: ele a cabeça, nós os seus membros. Ponhamos as nossas mãos nas mãos do divino Menino, respondamos o nosso Sim ao seu Sequere me [Segue-me], e seremos seus, e ficará aberto o caminho pelo qual a sua vida divina chegará até nós»[93].

Pela Encarnação do Verbo, a vontade divina sobre a humanidade é o «ser um em Deus», a união de todos os homens uns com os outros, como membros do Corpo de Cristo. O mistério da Incarnação é já um mistério de fraternidade e comunhão dos homens em Deus (Jo 17, 23). A vida divina da Igreja, Corpo místico de Cristo, é o amor a Deus e o amor ao próximo, o ut omnes sint in Deo, a tradução da filiação divina na fraternidade humana. «“Este é o pão descido do céu”. Naquele que verdadeiramente faz deste pão o seu pão quotidiano, cumpre-se cada dia o mistério do Natal, a Encarnação do Verbo. Este é certamente o modo mais seguro de manter permanentemente o Unum esse cum Deo, de integrar-se cada dia de modo mais forte e mais profundo no Corpo místico de Cristo»[94].

«Se Cristo é a cabeça, e nós os membros do Corpus mysticum, então somos membros uns dos outros, e nós homens, juntos, unum esse in Deo, somos uma vida divina. Se Deus é em nós e é Amor, não podemos senão amar os irmãos, não pode ser de outra maneira. O nosso amor pelos seres humanos é a medida do nosso amor a Deus»[95]

O Verbo de Deus, pela sua Encarnação, uniu-se com cada homem em particular. A Encarnação é o fundamento da união mística com Deus. A união mística com Deus que tem a sua consumação na Cruz (CB 23, 6).

«Assim como no Paraíso, comendo da fruta proibida da árvore, a natureza human foi estragada e perdida, assim na árvore da Cruz foi redimida e reparada, e ali no alto da Cruz é onde o Esposo divino estendeu à alma sua esposa a mão da sua graça e misericórdia e por meio da sua Paixão e Morte fez cessar a inimizade que pelo pecado original havia entre o homem e Deus. Sob a árvore do Paraíso terrenal a mãe (a natureza humana) foi violada pelo pecado na pessoa dos primeiros pais. Sob a árvore da Cruz devolve-se a vida à alma»[96].

A união mística é uma participação da Encarnação: «Por meio da Encarnação, Deus homem abriu uma via de comunicação com cada alma e, em certo sentido, volta a encarnar-se e a fazer-se homem cada vez que uma alma se lhe entrega tão sem reservas que possa ser elevada até ao matrimónio místico»[97].

«E ainda é assim com todos os filhos de Deus. A vida divina que se acende na alma é a Luz que veio às trevas, o milagre da Noite Santa. Quem a leva em si sabe de que falamos. Para os outros, qualquer coisa que dela se possa dizer é um balbúcio incompreensível. Todo o Evangelho de João é um semelhante balbuciar a luz eterna, que é amor e vida. Deus em nós e nós n’Ele, nisto consiste a nossa participação no Reino de Deus, cujo fundamento é o mistério da Encarnação»[98].

O cumprimento da vontade de Deus, em que consiste a união com Deus[99], e a perfeição[100], é a concreção da nossa condição filial e fraterna. A vontade de Deus há-de ser o fio condutor de toda a vida cristã (Mt 7, 21; 12, 50). O fiat voluntas tua deve ser em toda a sua dimensão a norma de uma vida cristã, também e sobretudo no meio da noite mais escura (Mt 26, 39.42). Amar Jesus é guardar os seus mandamentos (Jo 14, 15. 21).

«Ser filho de Deus significa deixar-se guiar pela mão de Deus, fazer a vontade do Pai, não a própria, pôr nas mãos de Deus todas as nossas preocupações e esperanças, não nos preocuparmos mais connosco e com o nosso próprio futuro. Nisto fundamentam-se a liberdade e a alegria dos filhos de Deus. (…) Engana-se certamente nas contas aquele que espera que o Pai celeste lhe dê sempre a seu tempo aquele rendimento e aquele alimento que julga desejável. Não é nestas condições que se estabelece um pacto com Deus. Só se pode viver com inquebrantável confiança no Senhor quando se compreende a disponibilidade para aceitar da mão do Senhor qualquer coisa. Só Ele sabe o que nos convém. E se acontecer ser mais conveniente a necessidade e a privação do que uma situação abastada e segura, ou o insucesso e a humilhação serem melhores do que a honra e a consideração, então devemos estar prontos para aceitar também isso. Se procedermos assim, podemos então viver do presente, desembaraçados do futuro»[101].

14. «Não tardarás, se eu espero».

Quem é o que espera, em quem se espera, o que se espera, como se espera, estas e outras perguntas da «vivência da esperança» estão implícitas, se não explícitas, na «oração de alma enamorada». A nossa experiência humana é de pobreza actual, necessitada de pedir dons e libertação. Tudo o que pedimos a Deus – o perdão dos nossos pecados, a esperança e a posse da glória – já o recebemos de Deus em Cristo, o dom total. O que Cristo é e tem, é-o e tem-no a humanidade por participação. Aqui se gera a esperança e cresce a nossa confiança em Deus. A sua «teologia do Advento», que é uma «teologia da esperança» – «S. João da Cruz não é só o Doutor da fé, é também o Doutor da esperança»[102] –, condensa-se em duas perguntas: «Porque esperas? Porque tardas?». O que Deus espera de nós? Deus, no dizer do orante enamorado, «quer» e espera de nós o nosso «cornadilho», a nossa insignificância, o pouco que lhe devemos dar. «Deus não desespera de ninguém, mas a todos mendiga o amor: «não quer tomar nada sem Lho darmos, e a mais pequena coisa é preciosa aos seus olhos divinos»[103]. Deus tarda às vezes e faz esperar. E a «espiritualidade da esperança» resume-se numa resposta: «Não tardarás, se eu espero». Esperar é crer e amar mais a partir de agora: «desde já podes amar a Deus em teu coração». Lembra-nos o Santo o nosso «coração inquieto»: «O coração não se satisfaz com menos que Deus» (CB 35, 1). Por fim, a espera termina na posse total: «Meus são os céus…».

«Oração de alma enamorada: Senhor Deus, amado meu! Se ainda Te recordas dos meus pecados, para não fazeres o que ando pedindo faz neles, Deus meu, a Tua vontade, pois é o que mais quero, e exerce neles a Tua bondade e misericórdia e serás neles conhecido; e, se esperas por obras minhas, para, por meio delas, me concederes o que Te rogo, dá-as Tu, e opera-as Tu por mim, assim como as penas que quiseres aceitar e faça-se. Mas se pelas minhas obras não esperas, porque esperas, clementíssimo Senhor meu? Porque tardas? Porque, se, enfim, há-de ser graça e misericórdia o que em teu Filho Te peço, toma a minha insignificância pois a queres, e dá-me este bem, pois que Tu também o queres.

Quem se poderá libertar dos modos e termos baixos se não o levantas Tu a Ti em pureza de amor, Deus meu?

Como se levantará a Ti o homem gerado e criado em baixezas, se não o levantas Tu, Senhor, com a mão com que o fizeste?

Não me tirarás, Deus meu, o que uma vez me deste em Teu único Filho Jesus Cristo, em quem me deste tudo quanto quero; por isso folgarei pois não tardarás, se eu espero.

Com que dilações esperas, pois, se desde já podes amar a Deus em teu coração?

Meus são os céus e minha é a terra; minhas são as gentes, os justos são meus, e meus os pecadores; os anjos são meus e a Mãe de Deus e todas as coisas são minhas, e o mesmo Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e todo para mim. Que pedes pois e buscas, alma minha? Tudo isto é teu e tudo para ti. Não te rebaixes nemrepares nas migalhas que caem da mesa de teu Pai. Sai para fora de ti e gloria-te da tua glória; esconde-te nela e goza, e alcançarás o que pede o teu coração» (D 26-31).

Que espera de nós (pessoalmente, comunitariamente, provincialmente), o Senhor, neste Advento, Natal e Epifania? Obras? «Obras quer o Senhor», diz S. Teresa de Jesus. Diz-nos S. João da Cruz, com o seu testemunho pessoal – «folgarei, pois não tardarás, se eu espero» –, que é testamento espiritual para os seus irmãos, que «esperar é crer e amar mais a Deus desde já no nosso coração: «Com que dilações esperas, pois, se desde já podes amar a Deus em teu coração?». A esperança é contrária às dilações, delongas e demoras, ao «laissez faire, laissez aller, laissez passer»[104]  – ao «deixai fazer, deixai ir,  deixai passar» –, exige a actuação imediata na história, porque «o futuro está agora nas nossas mãos», as colheitas abundantes são fruto das pobres sementeiras actuais. Para colhermos frutos de santidade, de oração, de vocações, de melhor vida fraterna comunitária, etc…, temos de semear, pois só Deus «colhe o que não semeia».

«Uma forma de uma tal falsa misericórdia muito debatida nos nossos dias consiste em proteger mais o autor do que a vítima em casos de injustiça. (…) Há que mencionar, sobretudo, o ponto de vista do laissez faire, que tudo tolera e consente. Começa quando os pais, por falsa misericórdia, «cedem em tudo aos filhos. Esta mesa atitude errada acontece quando alguém, por aparente misericórdia, faz vista grossa em relação a uma conduta errada e pecaminosa em vez de exortar à conversão»[105].

«Viver na esperança é poder amar, o que se deve entender por amar a vida que não é amada e que é rejeitada. Amar porém o que é senão contar com as possibilidades que ainda não foram despertadas no próximo, incluindo as possibilidades de Deus nele? A reconciliação e a esperança difundem-se graças a um amor concreto, pessoal e social. Por isso, é definitivamente no amor criador, fonte de reconciliação e de esperança, que residem as possibilidades mais profundas do homem humano num mundo desumano»[106].

O Santo vincula a esperança à operatividade e laboriosidade do trabalho presente e actual. Não devemos estar à espera de algum «falso messias» que nos venha salvar pessoal, comunitária e provincialmente – aliás, não lhe deveríamos fazer caso (Lc 21, 8) – se desde já não esperarmos mais no Senhor, a saber, se não crermos e confiarmos mais n’Ele e mais O amarmos. Esta teologia e espiritualidade da esperança da oração de alma enamorada, que vai do desespero da nossa pobre situação actual até à acção de graças pela mesa abundante[107] – a esperança activa, o começar desde já, a partir de agora, sem deixar para amanhã o que se pode e deve iniciar hoje –, é um rico e sábio património espiritual que herdamos do nosso Pai S. João da Cruz.

É no presente que a esperança teologal, no ensino de João da Cruz, purificando e sanando a memória das recordações do passado (tristezas, aflições, amarguras, ofensas, erros, vaidades e doçuras, gozos maus vãos (3 S 4, 2), de obsessões (Ct 22), das graças de Deus (3 S 13, 6), do perdão de Deus (D 46), dos pecados (CB 33, 1), e do seu efeito na alma (3 S 5, 2), realiza a sua melhor função de fazer-nos viver no «aqui e agora» do momento presente – quem somos, o que temos, o que fazemos, o que esperamos –, como antecipação do futuro de ver, amar e possuir a Deus com imediatez, que possuímos nas nossas mãos. É preciso agir quanto antes, levados pela esperança, apesar da pobreza de meios com que contamos: «Levar tudo com igualdade tranquila e pacífica, não só aproveita à alma para muitos bens, mas também para que nessas mesmas actividades se acerte melhor a julgar delas e a pôr-lhes remédio conveniente» (3 S 6, 3).

A esperança teologal constrói gradualmente o futuro de glória, etapa por etapa, desde os fervores dos principiantes, da sobriedade nas renúncias, das noites purificadoras, da busca ansiosa e da aspiração de glória até à visão de glória. A vida consagrada tem à sua frente «um grande futuro a construir»[108]. O caminho histórico da esperança teologal, feito «ao passo do homem», pouco a pouco, implica a «ruptura» com o «status quo», o habitualmente conhecido, e a «exploração» de novos caminhos desconhecidos, com posse limitada, desejo infinito, trabalho imediato, confiança, aventura e risco (2 N 16, 8).

As comodidades, as instalações, os aburguesamentos, os individualismos, são estorvos que entorpecem o caminhar. É difícil abandonar a nossa vida, caminho espiritual e destino nas mãos de Deus, para não passarmos a vida a cuidar de nós mesmos e dos nossos «bocados» e interesses. É preciso, diz-nos João da Cruz, esperar em Deus, confiar em Deus, fiar-se de Deus, que «nos há-de levar por onde mais nos convém» (Ct 19). A dura vivência da pobreza real, como ele experimentou (Pr 383), e a alegria de servir, mesmo quando não se serve para nada ou para pouco ou muito pouco, ou quando se é incompreendido, difamado ou perseguido, como no caso do Santo (Ct 30), é indício de que se vive apoiado na esperança em Deus, a saber, com a força de Deus desprendemo-nos facilmente dos cuidados que nos atam a eles e eles a nós: «Ao desapegado não lhe molestam cuidados, nem na oração, nem fora dela; e assim, sem perder tempo, com facilidade faz muita fazenda espiritual» (3 S 20, 3).

15. «Espera ela o fim da sua obra»

O povo de Israel, desterrado no exílio da Babilónia, na nostalgia da sua terra e na saudade da sua cidade, morre de pena e tristeza e ressuscita de esperança com a «doce memória» da Jerusalém amada: «Em mim por ti morria / e por ti ressuscitava». Recusa-se a cantar cânticos de Sião em terra estrangeira. O que o poeta, na prisão de Toledo, amava mais de Sião – a música (do amor) – fica sem ela (os irmãos e os amigos), que é como dizer, fica sem coração. Mas «ali», fora de Sião, em terra estranha – onde o amor cessa, a música cala, a vida morre e o coração gela – canta ele, que o amor o atacou e tomou posse do seu coração: «me feriu o amor e o coração me tirava». Onde não há memória do amor, tudo é morte: «a memória de ti / dava vida e a tirava».

O poeta fez do salmo 137 uma narração da sua vida. Fala de si mesmo – «eu» –, de «tu», que é «Sião». «Ele», o Messias, a pedra que foi rejeitada, mas que veio a tornar-se pedra angular, amava Sião, morreu fora dela. «Ele», João, rejeitado pelos seus irmãos de hábito, pequenos entre os pequenos, confia no amor, durante a noite escura da solidão e silêncio, e ali, na terra estranha da prisão, morria e ressuscitava a pedra angular da reforma teresiana. Por isso, muda a pedra assassina das crianças babilónicas na pedra redentora de Cristo. João é um exemplo de quem espera na noite escura, do dinamismo da esperança num presente de provação difícil e dolorosa.

«E pendurei nos verdes salgueiros
a música que levava
pondo-a em esperança
de aquilo que em ti esperava
Bem-aventurado era
aquele em quem confiava,
que te há-de dar o castigo
que de tuas mão levava,
e juntará os seus pequenos
e a mim, porque em ti chorava,
à pedra, que era Cristo
pelo qual eu te deixava!»[109]

«E o coração me tirava», diz de Cristo João na prisão de Toledo. «Parecia que a frei João lhe tiravam continuamente o coração desde o Céu», diz-se de João, na declaração de uma testemunha. O «dulcíssimo Jesus, Esposo das almas fiéis» (CB 40, 7) «tirou-lhe» o coração com o amor da sua notícia, com a vista da sua formosura, e, pelo amor com que o enamorou, tirou-o do seu poder e não o pôs deveras no seu Coração. João pergunta-lhe: Pois que me roubaste (o coração), porquê assim o deixaste e não tomas o roubo que roubaste? A alma enamorada de Deus espera o matrimónio espiritual com Ele. A esperança harmoniza-se com a caridade e o desejo com a posse. A alma deseja entregar-se sem reservas e responder ao amor de Deus com igualdade de amor.

«Porquê não tomas o coração que roubaste por amor, para o encher, e fartar, e acompanhar, e sarar, dando-lhe assento e repouso completo em ti?

A alma enamorada, por mais conformidade que tenha com o Amado, não pode deixar de desejar a paga e salário do seu amor, pelo qual salário serve ao Amado; e de outra maneira não seria verdadeiro amor, porque o salário e paga do amor não é outra coisa, nem a alma pode querer outra coisa, senão mais amor, até chegar à perfeição do amor. Porque o amor não se paga senão de si mesmo, segundo o deu a entender o profeta Job, quando, falando com a mesma ânsia e desejo em que aqui está a alma, disse: Assim como o servo deseja a sombra, e como o jornaleiro espera o fim da sua obra, assim eu tive os meses vazios e contei as noites trabalhosas para mim. Se dormir, direi: quando chegará o dia em que me levantarei? E logo voltarei a esperar pela tarde e serei cheio de dores até às trevas da noite (7, 2).

Assim, pois, a alma incendida em amor de Deus deseja o cumprimento e a perfeição do amor, para ali ter perfeito refrigério. Tal como o servo fatigado do estio deseja o refrigério da sombra; e como o mercenário espera o fim da sua obra, espera ela o fim da sua. É de notar aqui que o profeta não disse que o mercenário esperava o fim do trabalho, mas o fim da sua obra, para dar a entender o que vamos dizendo, a saber, que a alma que ama não espera o fim do seu trabalho, mas o fim da sua obra. Porque a sua obra é amar, e desta obra que é amar, espera ela o fim e remate, que é a perfeição e a plenitude de amar a Deus, e até que isso se cumpra a alma permanece sempre no estado em que Job a pinta no dito lugar: tendo os dias e meses por vazios e contando as noites trabalhosas e prolixas para si. Nisto fica dado a entender como a alma que ama a Deus não há-de pretender nem esperar outro galardão de seus serviços, senão a perfeição de amar a Deus» (CB 9, 7).

16. «Vive todavia em esperança»

A experiência permanente do poeta é o «gemido» da esperança que acompanha sempre o seu viver (CB 1, 14). «Na luz da fé, esperou a vida eterna, e fazendo as obras por amor de Deus, adquiriu a vida eterna» (3 S 27, 4).

«Aonde te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido?» A vida inteira do cristão é uma «esperança escatológica» ou «gemido» de amor na obscuridade da fé, até que chegue a glória do Senhor, porque Cristo «nos deixou com gemido», porque «a ausência do Amado causa contínuo gemer ao amante». Na intimidade da união de amor com Deus há uma esperança passiva-activa que nos faz desejar e buscar sempre, em amor impaciente (2 N 13, 8), em todas as coisas (2 N 19, 2), a presença e a plenitude do Amado: «O coração não pode estar em paz e sossego sem alguma posse… e se não possui perfeitamente o que ama não lhe pode faltar tanta fadiga quanta é a falta até que o possua e se satisfaça, porque até então está a alma como vaso vazio, que espera ser cheio… Desta maneira está o coração bem enamorado» (CB 9, 6). «A vontade não se contenta e satisfaz com menos que a vista e presença» do Amado (CB 6, 2) «A situação de ausência não impede a comunhão de amor, pois o Ausente ocupa o centro da atenção amorosa»[110]. A esperança teologal é sempre esperança de futuro teologal, de gemido celeste e glorioso. A esperança nunca deixa desaparecer o gemido, a aspiração do «doce encontro» de glória.

«E por consistir nisto a perfeição de amor em que se possui a Deus com mui junta e particular graça, vive a alma nesta vida, quando a ela chegou, com alguma satisfação, embora não com fartura, pois que David com toda a sua perfeição a esperava no céu, dizendo: “Quando aparecer a tua glória, ficarei saciado” (Ps 16, 15). E assim, não lhe basta a paz e a tranquilidade e a satisfação de coração a que a alma pode chegar nesta vida, para que deixe de ter dentro de si gemido, embora pacífico e não penoso, na esperança do que lhe falta; porque o gemido é anexo à esperança; como o que o Apóstolo dizia que tinha ele e os demais, embora perfeitos, dizendo: “Nós mesmos, que temos as primícias do espírito, dentro de nós gememos esperando a adopção de filhos de Deus” (Rom 8, 23). Este gemido tem, pois, aqui a alma dentro de si no coração enamorado; porque onde o amor fere, aí está o gemido da ferida clamando sempre no sentimento da ausência; mormente havendo gostado alguma doce e saborosa comunicação do Esposo que, ausentando-se, a deixa só e seca de repente. Por isso logo diz: Como o veado fugiste» (CB 1, 14).

«Foi na esperança que fomos salvos» (Rm 8, 24). «Cristo é entre nós a esperança da glória» (Cl 1, 27). O Santo, coração enamorado por Cristo, era «uma alma que penava por ver a Deus»: «gozo, Senhor, com esperança de ver-te» (P 8, 6). «Isto quer a alma enamorada, que não sofre dilações de que se espera a que naturalmente se acabe a vida nem a que em tal ou tal tempo se corte; porque a força do amor e a disposição que em si vê a fazem querer e pedir que se rompa logo a vida com algum encontro e ímpeto sobrenatural de amor» (CH 1, 34).

«A terceira caverna é a memória, e o vazio desta é o desfazer e derreter da alma pela posse de Deus, como o nota Jeremias, dizendo: Memoria memor erro et tabescet in me anima mea (Lam 3, 20). Isto é: eu me lembrarei com a minha memória e disso muito me lembrarei e a minha alma derreter-se-á em mim; e repassando estas coisas no meu coração, viverei em esperança de Deus.

É, pois, profunda a capacidade destas cavernas, porque o que nelas pode caber, que é Deus, é profundo e infinito; e assim a sua capacidade será de certo modo infinita; e assim a sua sede é infinita, e a sua fome também é profunda e infinita, e o seu desfazer e penar é morte infinita, porque embora não se padeça tão intensamente como na outra vida, o que se padece é porém uma viva imagem daquela privação infinita, e isto porque a alma está com certa disposição para receber a sua plenitude. Ainda que este penar é de outro género, porque é nos seios do amor da vontade, que não é o que alivia a pena, pois quanto maior é o amor, tanto mais é a sua impaciência pela posse de Deus, a quem espera por momentos com intenso desejo» (CH 3, 21-22).

Deseja e pede o perfeito matrimónio espiritual na visão beatífica. A esperança teologal é um apetite e desejo que nos acompanha até às portas do céu.

«Acaba já, se queres. Quer dizer, acaba já de consumar perfeitamente comigo o matrimónio espiritual com a tua vista beatífica, porque esta é a que a alma pede. Mas, embora seja verdade que, neste estado tão alto, a alma está tanto mais conforme e satisfeita quanto mais transformada em amor, e para si nenhuma coisa sabe nem acerta a pedir, senão tudo para o seu Amado, pois a caridade, como diz S. Paulo, não pretende para si as suas coisas (1 Cor 13, 5), mas para o Amado; porque vive todavia em esperança, em que não se pode deixar de sentir vazio, tem tanto de gemido, ainda que suave e regalado, quanto lhe falta para a acabada posse da adopção dos filhos de Deus; onde, consumando-se a sua glória, se aquietará o seu apetite. O qual, por muito unido que aqui esteja com Deus, nunca se fartará nem aquietará enquanto não aparecer a sua glória, mormente tendo já o sabor e guloseima dela, como neste caso tem. A qual é tanta, que se Deus não tivesse aqui também favorecido a carne, amparando o natural com a sua destra, como fez com Moisés na pedra, para que sem morrer pudesse ver a sua glória (Ex 33, 22), a cada labareda destas se romperia o natural e morreria, não tendo a parte inferior vaso para sofrer tanto e tão subido fogo de glória» (CH 1, 27).

17. «Esperar além os nossos bens»

O Cristo glorioso, pelo Espírito, faz-nos provar a graça da sua cruz[111] e o esplendor da sua glória, numa escatologia presente, como gozo antecipado do reino. Deus em pessoa é Advento que vem comunicar connosco para vivermos em esperança do futuro de Deus. O Deus que veio, e que vem, é o Deus que há-de vir como o tudo da certeza da nossa esperança. A vida teologal é, do ponto da vista da «esperança certa»[112], tanto uma «espera dos nossos bens», quanto uma vida de peregrinação para a casa de Deus, nosso Pai. A esperança teologal educa-nos na vida teologal típica dos peregrinos, própria de quem tem de caminhar sempre com o bastão na mão, de trabalhar permanentemente com meios pobres, e de viver a vida de fé e amor como uma páscoa para a plenitude da vida.

«Que quer? Que vida ou modo de proceder se pinta é esta vida? Que pensa que é servir a Deus, senão não fazer males, guardando os seus mandamentos, e andar nas suas coisas como pudermos? Como haja isto, que necessidade temos de outras apreensões e outras luzes e sucos de cá ou de lá, em que ordinariamente nunca faltam tropeços e perigos para a alma, que com seus entenderes e apetites se engana e fascina e as suas próprias potências a fazem errar? E assim é grande mercê de Deus quando as escurece, e empobrece a alma de maneira que não possa errar com elas. E, como não se erre, que há que acertar senão ir pelo caminho plano da lei de Deus e da Igreja, e só viver em fé escura e verdadeira, e esperança certa, e caridade inteira, e esperar além os nossos bens, vivendo cá como peregrinos, pobres, desterrados, órfãos, secos, sem caminho e sem nada, esperando lá tudo» (Ct 19).

Se «a caridade tudo crê, tudo espera» (1 Cor 13, 7), «a esperança tudo alcança» (2 N 21, 8). A Igreja, ao «celebrar com santa alegria o nascimento do Filho, pede a Deus a graça de conhecer este mistério com fé viva e de o viver com ardente esperança»[113]. «O sexto grau de amor faz correr ligeiramente a alma a Deus e dar muitos toques n’Ele, e sem desfalecer corre pela esperança. (…) O amor fortalece a alma e fá-la voar ligeiro. Os santos que esperam em Deus mudarão a fortaleza, tomarão asas como de águia e voarão e não desfalecerão» (2 N 20, 1). Só os homens purificados podem «voar», isto é, «amar e cumprir os mandamentos de Deus» (Jo 14, 15. 21).

«Pelos ares entende as afeições da esperança, porque assim como ar voam a desejar o ausente que se espera. Donde também disse David: Os meum aperui et attraxi spiritum, quia mandata tua desiderabam (Ps 118, 131). Como se dissesse: Abri a boca da minha esperança e atrai o ar de meu desejo, porque esperava e desejava os teus mandamentos» (CB 20, 9).

O «voo» dá-se nas últimas fases do processo místico, já próximo da união. «O sonho do voo é uma realidade da noite… Para certas almas que têm uma vida nocturna poderosa, amar é voar»[114]. «Deus fez resplandecer a santíssima noite (de Natal) com o nascimento de Cristo, verdadeira luz do mundo»[115]. O mistério do Natal é, na Eucaristia, uma «admirável permuta de dons», uma «participação na divindade do Filho que uniu com Deus a natureza humana»[116]. Só o amor move e faz voar pela solidão (2 N 25, 5), na fé e na esperança da união de amor com Deus. «Sem outra luz nem guia senão a que no coração ardia»: o «mistério do Natal» é «Cristo, luz do mundo»[117].

«Na noite ditosa
em segredo que ninguém me via
nem eu reparava coisa,
sem outra luz e guia
senão a que no coração ardia.
Esta me guiava
mais certo que a luz do meio-dia
aonde me esperava
quem eu bem me sabia
em parte onde ninguém aparecia.
Oh noite que guiaste!
Oh noite amável mais que a alvorada!
Oh noite que juntaste
Amado com amada,
amada no Amado transformada!»[118].

A vida da alma no estado de transformação é um reino de paz, porque há um sossego total das paixões. Na união de amor, tudo cessa, e, a esposa, quieta e esquecida, reclina o rosto sobre o Amado, deixando o seu cuidado entre as açucenas olvidado: «um estado de paz, deleite e suavidade de amor» (CB 14, 2). «Deixar o seu cuidado no Senhor, para poder viver, é a felicidade do sétimo dia, quando formos esse dia»[119]. Todo o caudal da alma é posto, no exercício de amar, ao serviço de Deus, que é o seu ofício: «Não goza senão de Deus, nem tem esperança noutra coisa que em Deus, nem teme senão só a Deus, nem se dói senão segundo Deus, e também todos os seus apetites e cuidados vão só para Deus» (CB 28, 4).

«Nos desejos da esperança também não se aflige, porque estando já satisfeita com esta união de Deus quanto nesta vida pode, nem acerca do mundo tem que esperar nem acerca do espiritual que desejar, pois vê-se e sente-se cheia das riquezas de Deus. E assim, no viver e no morrer está conforme e ajustada com a vontade de Deus, dizendo segundo a parte sensitiva e espiritual: Fiat voluntas tua (Mt 6, 10) sem ímpeto de outra gana e apetite. E assim, o desejo que tem de ver a Deus é sem pena» (CB 21, 11).

18. «Quanto mais a alma espera, tanto mais alcança»

O místico ensaia uma nova expressão da experiência mística, o simbolismo da caça, uma arte e um desporto. Os principiantes andam à caça dos seus gostos» (1 N 6, 6). Os que deixam a contemplação para meditar são semelhantes aos que deixam a caça para voltar a caçar (1 N 10, 1). Pede aos anjos que cacem as raposas (CB 16, 2). A alma, caçada por Deus, pretende caçar a Deus. «A caça de amor é de altaneria» (Gil Vicente).

Deus, a «divina ave das alturas» (CB 31, 8), convida a alma a voar. Para «alcançar a Deus» é preciso voar até ao espaço infinito das alturas. Desfalece a esperança em Deus – «neste trance no voo fiquei falto» –, mas aonde não pode chegar a ciência, chega o amor na obscuridade da fé, única luz e guia para a luz infinita de Deus. O «salto da fé» não é um lance para o «vazio» (1 S 5, 6) ou para o «ar» (3 S 29, 2), mas para a união com Deus (2 S 9, 1). Apesar da desesperança – «não haverá quem alcance!» –, confiou em Deus que exalta os humildes. Deus, que olha e ama o voo do amor, levanta-nos à altura da união de amor com a força do Espírito Santo (CB 31, 4). O segredo da conquista é, da parte de Deus, o êxtase do amor e, da parte do homem, a fé no Espírito (1 Cor 12, 9), a esperança em Deus.

O amor a Deus sustenta a sua espera, porque o amor faz «correr» a esperança (2 N 20, 1). O poeta só espera o que alcança: «esperei só este lance». Espera com determinação e continuidade: «e em esperar não fui falto». A união com o Amado é rápida: «Fui tão alto tão alto que dei à caça alcance». O místico espera em Deus e alcança a Deus[120]. O teólogo comenta assim o dinamismo da esperança como purificação da memória no caminho da união com Deus. «O que não renuncia a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo» (Lc 14, 33): a esperança é amiga do «vazio» e inimiga da «posse».

«Neste Terceiro Livro, em que provamos como, a alma para se unir com Deus em esperança, tem de renunciar a toda a posse da memória, pois para que a esperança seja toda de Deus, nada há-de haver na memória que não seja Deus. (…) Quanto mais tem de posse, tanto menos tem de esperança. Logo, é necessário que a alma fique desnuda e esquecida de formas e notícias distintas de coisas sobrenaturais para não impedir a união segundo a memória, em esperança perfeita com Deus» (3 S 11, 1-2). «Toda a posse é contra a esperança, a qual, como diz S. Paulo, é daquilo que não se possui (Hb 11, 1). De onde, quanto mais a memória se desapossa, tanto mais tem de esperança; e que quanto mais tem de esperança, tanto mais tem de união com Deus; porque, no que respeita a Deus, quanto mais a alma espera, tanto mais alcança. E então espera mais quanto mais se desapossa; e quando se tiver desapossado perfeitamente, perfeitamente ficará com a posse de Deus em divina união» (3 S 7, 2). «O que pretendemos é que a alma se una com Deus segundo a memória em esperança, e o que se espera é do que não se possui e que quanto menos se possui de outras coisas, mais capacidade há e mais habilidade para esperar o que se espera e, consequentemente, mais esperança; e que quanto mais coisas se possuem, menos capacidade e habilidade há para esperar e, por conseguinte, menos esperança; e que, segundo isto, quanto mais a alma desapossar a memória de formas e coisas memoráveis que não são Deus, tanto mais porá a memória em Deus e mais vazia a terá para esperar d’Ele o que a há-de encher a sua memória; o que há-de fazer, pois, para viver em inteira e pura esperança de Deus, é, todas as vezes que lhe ocorrem notícias, formas e imagens distintas, sem nelas fazer assento, volver logo a alma para Deus em vazio de tudo aquilo que é memorável com afecto amoroso, não pensando nem olhando para aquelas coisas mais do que basta para, com a memória delas, entender e fazer o que é de obrigação, se disso eles forem. E isto sem pôr afecto nem gosto, para que não deixem efeito de si na alma. E assim não há-de o homem deixar de pensar e lembrar-se do que deve fazer e saber, porque, se não houver afeições de propriedade, não lhe fará dano. Aproveitam para isso os versos do “Monte” que estão no princípio do primeiro livro» (3 S 15, 1).

«Para vir a possuir tudo, não queiras possuir algo em nada», «para vir a possuir o que não possuis, hás-de ir por onde não possuis» (1 S 13, 11). A memória do homem deseja possuir tudo, mas não deve reparar em nada: «todas as coisas lhe são nada, e ela é para os seus olhos nada. Só o seu Deus para ela é o tudo (CH 1, 32). Cristo é o Tudo de Deus ao homem (2 S 22, 4). A alma há-de ter pura memória de Deus, apoiada só em Deus pela esperança.

«Minha alma está desapegada
de toda coisa criada
e sobre si levantada
e numa saborosa vida
só em seu Deus arrimada»[121].

O homem para se unir com Deus deve primeiro ser purificado activamente pelas três virtudes teologais.

«Quanta necessidade tem a alma, para ir segura neste caminho espiritual, de ir por esta noite escura arrimada a estas três virtudes, que a esvaziam de todas as coisas e escurecem nelas. Porque, como dissemos, a alma não se une com Deus nesta vida pelo entender, nem pelo gozar, nem pelo imaginar, nem por outro qualquer sentido, mas só pela fé segundo o entendimento, e pela esperança segundo a memória, e pelo amor segundo a vontade» (2 S 6, 1).

A nossa memória deve ser activamente purificada pela esperança, porque «a esperança faz na memória vazio de toda a posse» (2 S 6, 2). Trata, o autor, de aperfeiçoar a memória do homem no vazio da esperança.

«Não há igualmente dúvida de que a esperança põe a memória em vazio e treva no de aquém e no de além. Porque a esperança é sempre daquilo que não se possui; porque, se se possuísse, já não seria esperança. Donde S. Paulo diz ad Romanos: Spes, quae videtur, non est spes: nam quod videt quis, quid sperat? (8, 24). Isto é: A esperança que se vê, não é esperança; porque o que alguém vê, ou seja, o que possui, como o espera? Logo também esta virtude causa o vácuo, pois é do que se não tem, e não do que se tem» (2 S 6, 3).

A alma, mediante a esperança, «há-de voar às coisas que não se possuem, levantada sobre tudo o que se pode possuir de aquém e de além, fora de Deus» (2 S 6, 5). «Bom é à alma não querer compreender nada, senão a Deus pela fé em esperança» (3 S 13, 9). «A alma não tenha esperança de outra coisa… senão só de Deus. (…) Quanto mais esperar outra coisa, tanto menos esperará em Deus (3 S 16, 2). «O pai espiritual há-de ensinar a alma a esvaziar a memória das apreensões, pois, tudo quanto elas são em si, não a podem ajudar no amor de Deus tanto quanto o menor acto de fé viva e esperança que se faz em vazio e renúncia de tudo» (3 S 8, 5).

Deus, por meio da esperança, purifica a memória e o coração do homem. O homem sofre uma «noite de esperança», o seu presente, de miséria e infidelidade, está desligado do seu passado (os benefícios recebidos e os serviços prestados) e do seu futuro (sem remédio de salvação). Deus prova a força da nossa esperança, guiando-nos em noite de esperança. Alma padece suspensão e asfixia (2 N 6, 5), só vê o inferno e a perdição à sua frente (2 N 6-7). A sua esperança fica sem esperanças, mas não fica sem esperança teologal, sem a «actual esperança» em Deus (2 N 8, 1). A verdadeira purificação da memória acontece na noite passiva da alma: «neste sepulcro de escura morte convém-lhe estar para a espiritual ressurreição que espera» (2 N 6, 1). Esta provação passiva, apesar de ser sentida como morte física, psíquica e espiritual da alma é, ao mesmo tempo, pela força da esperança – «espero no meu Deus» –, como disse David, a sua salvação (2 N 6, 6). Se a esperança é uma força operativa na situação limite da «noite escura», é-o muito mais nas circunstâncias normais da vida espiritual.

A experiência do profeta Jeremias é, na mente do Santo, um modelo ideal na descrição dos tormentos indizíveis da alma em purificação passiva: «frustrada e acabada está o meu fim e pretensão, e a minha esperança [do] Senhor» (2 N 7, 2). A alma há-de sofrer, como Jeremias, com esperança a sua divina purificação (2 N 8, 1). «Tal é a obra que nela faz esta noite encobridora das esperanças da luz do dia» (2 N 9, 8). A alma sente-se, como Job, «sem nenhuma esperança» (2 N 9, 9), e «espera e padece sem consolação de certa esperança de alguma luz e bem espiritual» (2 N 11, 6). «Assim como o jornaleiro espera o fim da sua obra, assim eu (Job) tive vazios os meses, e contei as noites trabalhosas para mim» (CB 9, 7). A finalidade da «noite escura» é para dar ânimo à alma: «para que quando se espantarem com o horror de tantos trabalhos se animem com a certa esperança de tantos e tão avantajados bens de Deus como nela se alcançam» (2 N 22, 2).

O mundo é inimigo do homem, porque lhe rouba o coração do seu Amigo Deus. «O coração que é de Deus, como pode ser do mundo?» (Ct 17). O Esposo não pode negar nada à esposa. O futuro da esposa é noite e não morte, é vida em movimento e vitória. O «amanhã» da esposa, pela actuação do poder de Deus nela (2 Cor 12, 7-10), é «ressurreição do que hoje está morto» nela, uma aparição do que hoje nela está perdido. A esperança é o «capacete da salvação» que cobre a alma, a sua arma de defesa contra o mundo, a «viseira» para ela olhar para o alto (o Altíssimo), a fim de a apartar do que se pode possuir do mundo e pondo-a em Deus. O projecto teologal das três virtudes teologais é o de purificar e unir a alma com Deus. A esperança da vida eterna levanta, por vezes, de tal maneira o «coração ao alto» que tudo o que é do mundo parece sem valor.

«Sobre esta túnica branca de fé logo a alma sobrepõe a segunda cor, que é uma cota (armilha, almilha) verde. Pela qual, como dissemos, é significada, a virtude da esperança, com a qual, quanto ao primeiro, a alma se livra e defende do segundo inimigo, que é o mundo; porque este verde da esperança viva em Deus dá à alma uma tal viveza, animosidade e levantamento às coisas da vida eterna, que, em comparação das que ali espera, tudo o que é do mundo lhe parece, como na verdade é, seco, murcho, morto e de nenhum valor. Aqui se despe e despoja de todas essas vestes e trajes do mundo, não pondo o seu coração em nada, nem esperando nada do que há ou há-de haver nele, vivendo somente vestida de esperança de vida eterna. Pelo que, tendo o coração tão levantado do mundo, não só não lhe pode tocar e prender o coração, mas nem alcançá-lo com a vista.

E assim, vai a alma muito segura deste segundo inimigo, o mundo, com esta libré e disfarce verde. Porque S. Paulo chama à esperança “elmo de salvação” (1 Tess 5, 8), que é uma arma que ampara toda a cabeça e a cobre de maneira a não lhe ficar descoberto senão a viseira para ver. E isso tem a esperança, cobre todos os sentidos da cabeça da alma de maneira a não lhe ficar por onde os possa ferir alguma seta do século; só lhe deixa uma viseira para o olho poder olhar para cima, e não mais, que é o ofício que ordinariamente a esperança faz na alma, levantar-lhe os olhos a olhar só para Deus, como diz David que fazia ele quando disse: “Oculi mei sempre ad Dominum” (Ps 24, 15), não esperando bem algum de outra parte, a não ser como ele diz noutro salmo: “Assim como os olhos da serva estão postos nas mãos da sua senhora, assim os nossos estão em Deus nosso Senhor, até que tenha piedade de nós que n’Ele esperamos” (Ps 122, 2).

Por causa desta libré verde, pois está sempre a olhar para Deus e não põe os olhos noutra coisa nem se pega senão só a Ele, agrada-se tanto o Amado da alma, que é verdade dizer que tanto alcança d’Ele quanto ela d’Ele espera. Por isso, o Esposo diz-lhe nos Cântico dos Cânticos que só “o olhar de um dos olhos lhe feriu o coração” (4, 9). Sem esta libré verde de esperança só de Deus, não convinha à alma sair a esta pretensão de amor, porque não alcançaria nada, porquanto é a esperança porfiada que move e vence.

A alma vai disfarçada com esta libré verde da esperança por esta secreta e escura noite que dissemos, pois vai tão vazia de toda a posse e arrimo, que não leva os olhos noutra coisa, nem o cuidado senão em Deus, “pondo no pó a boca se porventura houver esperança” (Lam 3, 29) como alegamos então de Jeremias…

Este, pois, é o disfarce que a alma diz levar na noite da fé por esta secreta escada, e estas são as suas três cores. As quais são uma acomodadíssima disposição para a alma se unir com Deus, segundo as suas três potências, que são: entendimento, memória e vontade.

Porque a fé esvazia e escurece o entendimento de toda a sua inteligência natural, e assim o dispõe para o unir com a Sabedoria divina.

E a esperança esvazia e aparta a memória de toda a posse da criatura, porque, como diz S. Paulo, “a esperança é do que não se possui” (Rom 8, 24); e assim aparta a memória do que se pode possuir e a põe no que espera. E por isto só a esperança de Deus dispõe puramente a memória para a unir com Deus.

A caridade, nem mais nem menos, esvazia e aniquila as afeições e apetites da vontade de qualquer coisa que não é Deus, e só os põe n’Ele; e assim esta virtude dispõe esta potência e a une com Deus por amor.

E assim, como estas virtudes têm por ofício apartar a alma de tudo o que é menos que Deus, por conseguinte, o têm de a juntar com Deus.

E assim, sem caminhar deveras com o traje destas três virtudes, é impossível chegar à perfeição da união com Deus por amor.

Donde, para a alma alcançar o que pretendia, que era esta amorosa e deleitosa união com o seu Amado, muito necessário e conveniente traje e disfarce foi este que a alma aqui tomou. E também atinar a vesti-lo e perseverar com ele até conseguir a pretensão e o fim tão desejado como era a união de amor, foi grande ventura, e por isso diz logo este verso: Oh ditosa ventura[122].

19. «Esperança do céu tanto alcança quanto espera»

A união de amor com Deus, a «união em esperança com Deus», é uma possibilidade aberta a todos, e não um sonho impossível; está ao alcance de todos, porque, pela sua encarnação e morte na Cruz, Deus, a águia real, deixa-se prender pela ave de baixo voo (CA 22, 4). Daí a sua sentença favorita: «esperança do céu tanto alcança quanto espera».

«Atrás de um amoroso lance,
e não de esperança falto
voei tão alto tão alto,
que dei à caça alcance.
Por uma estranha maneira
mil voos passei de um voo,
porque esperança do céu
tanto alcança quanto espera;
esperei só este lance
e em esperar não fui falto,
pois fui tão alto tão alto,
que dei à caça alcance»[123].

A aventura da caça de Deus é uma «ditosa ventura», porque Deus está sempre a um passo de nós[124]. Jesus, o Verbo de Deus, o Filho de Deus, o Esposo da Igreja, com o seu advento, a sua encarnação e a sua epifania abriu-nos o caminho da salvação – «na esperança é que fomos salvos» (Rm 8, 24) –, isto é, fez-nos alcançar tudo o que a «esperança do céu» nos prometia, a saber, a vida eterna, a definitiva comunhão com Deus. Que Jesus, o Senhor do Advento, do Natal e da Epifania aumente a nossa fé, a nossa esperança e a nossa caridade. Amen.

«Apartando a alma de todos os testemunhos e sinais aparentes, se exalta em fé muito pura, a qual Deus lhe infunde e aumenta com muita mais intensidade, e juntamente aumenta-lhe as outras virtudes teologais, que são caridade e esperança; em que goza de divinas e altíssimas notícias por meio do obscuro e desnudo hábito da fé; e de grande deleite de amor por meio da caridade, com que a vontade não goza em outra coisa senão em Deus vivo; e de satisfação na memória por meio da esperança. Tudo isto é um proveito admirável que importa essencial e directamente à união perfeita da alma com Deus» (3 S 32, 4).

«Permanecendo neste corpo, vivemos exilados, longe do Senhor» (2 Cor 5, 6). Por isso, «gememos no nosso íntimo e ansiamos por estar com Cristo»[125].

«Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.
A nossa alma espera o Senhor,
Ele é o nosso amparo e protector.
N’Ele se alegra o nosso coração:
Em seu nome santo pomos a nossa confiança.
Venha sobre nós a vossa bondade,
Porque em Vós esperamos, Senhor» (Sl 33 (32), 18-22)

Só com uma esperança como a de São João da Cruz se pode acabar a vida com este último grito da esperança – «acaba já se queres, rompe a tela deste doce encontro» – a saber, «acaba já de consumar o matrimónio espiritual com a tua beatífica vista, porque esta é a que pede a alma» (CH 1, 27). São João da Cruz, que vivia já este «doce encontro» nos «doces mistérios da Encarnação» de Jesus, ajuda-nos a recuperar o sentido genuíno do Advento, como espera “d’Aquele que há-de vir”, do Natal, como união divina e humana, e da Epifania, como manifestação do amor de Deus que nos salva. «O Senhor descobre o seu santo braço à vista de todas as nações, e todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus» (Is 52, 10).

«Deus salvou-nos e chamou-nos à santidade, não em virtude das nossas obras, mas do seu próprio desígnio e da sua graça. Esta graça que nos tinha sido dada em Cristo Jesus, desde toda a eternidade, manifestou-se agora pelo aparecimento de Cristo Jesus, nosso Salvador, que destruiu a morte e fez brilhar a vida e a imortalidade, por meio do Evangelho» (2 Tm 1, 9-10).

«Para a salvação de todos os homens convinha que a infância do mediador entre Deus e os homens se manifestasse ao mundo inteiro, mesmo quando se encontrava escondido numa pequena aldeia. Por isso, apareceu aos Magos uma estrela de nova luminosidade, mais clara e mais brilhante que as outras, e tal, que atraiu os olhos e os corações de quantos a contemplavam. Fez que o buscassem os que não o compreenderam e Ele próprio se ofereceu a ser encontrado pelos que o buscavam»[126]. «Aquele que por nós quis nascer não quis por nós ser ignorado; e por isso Se manifestou deste modo, para que o grande mistério da sua bondade não fosse ocasião de grande erro»[127]. Cristo é a «luz das nações» e «a sua luz resplandece no rosto a sua Igreja, sacramento universal de salvação»[128]. «Hoje a Igreja uniu-se ao seu esposo celeste, porque no Jordão Cristo a lavou dos seus pecados; os magos, com presentes, correm às festas das núpcias reais; e os convivas alegam-se com a água transformada em vinho. Aleluia»[129].

«Representados pelos três Magos, adorem todos os povos o Autor do universo e seja Deus conhecido não só na Judeia mas em todo o orbe da terra»[130]. «Virão adorar-Vos, Senhor, todos os povos da terra» (Sl 71), assim reza a Igreja, precisamente, no dia da Epifania do Senhor. «Hoje os Magos consideram com profundo assombro o que vêem no presépio: o Céu na terra, a terra no Céu, o homem em Deus, Deus no homem, e Aquele a quem todo o universo não pode conter incluído num pequenino corpo de criança. Vêem, crêem e não discutem, como o demonstram os seus dons simbólicos: com o incenso reconhecem-n’O como Deus, com o ouro aceitam-n’O como Rei, com a mirra exprimem a fé n’Aquele que havia de morrer»[131]. «Recordamos neste dia três mistérios: hoje a estrela guiou os Magos ao presépio: hoje, nas bodas de Caná, a água foi mudada em vinho; hoje, no rio Jordão, Cristo quis ser baptizado, para nos salvar. Aleluia»[132]. «O Rei dos Reis! Ele dá-se hoje a conhecer no rosto amoroso de uma terna criança nos braços de sua Mãe. Ele acolhe a homenagem dos Reis do Oriente e juntamente com esta homenagem quer receber também a nossa»[133].

Oxalá o Santo nos alcance o dom de contemplarmos e testemunharmos a glória do Verbo Encarnado, a Luz e a Vida dos homens, de cuja plenitude recebemos «graça sobre graça» (Jo 1, 16). Deste modo, a nossa vida será luminosa – «brilhe a vossa luz diante dos homens» (Mt 5, 16) –, isto é, manifestação da sua Vida – «Jesus deu a sua vida por nós» –, porque «damos a vida pelos nossos irmãos» (1 Jo 3, 16). Então, «quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é» (1 Jo 3, 2).

«O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos, o que tocámos com as nossas mãos acerca do Verbo da Vida, é o que vos anunciamos. Porque a Vida manifestou-se, e nós vimos e damos testemunho d’Ela. Nós vos anunciamos a Vida eterna, que estava junto do Pai e nos foi manifestada. Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão connosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com Seu Filho, Jesus Cristo» (1 Jo 1, 1-3).

REIS, Manuel – S. João da Cruz, Advento, Natal e Epifania de Cristo. In Revista de Espiritualidade, 40 (2002) pp. 245-271; pp. 41 (2003) 55-80. (Revisto)


[1] Cf. Liturgia das Horas, pp. 192-193 e 1069-1070, respectivamente.

[2] Liturgia das Horas I, p. 366.

[3] Edite Stein, Ser finito Ser Eterno, 136.

[4] F. Ruiz, Introducción a San Juan de la Cruz, BAC, Madrid, 1968, p. 367.

[5] Hino III de Laudes de Advento, em Liturgia das Horas, I, p. 119.

[6] A. Guerra, «Ventura y tormento de la esperanza (en San Juan de la Cruz)», AA. VV., San Juan de la Cruz: Diálogo y hombre nuevo, Madrid, Editorial de Espiritualidad, 1976, pp. 63-92.

[7] GS 19.

[8] Edite Stein, CC 336.

[9] P 13. «Letrinha ou refrão que se cantava indefectivelmente durante a noite de Natal (“la nochebuena”) nos conventos onde era superior o santo. De uma destas noites de Natal em Granada fala o P. Alonso na sua biografia sanjoanina inédita: Frei João da Cruz “mandou pôr a Mãe de Deus num andor, e levada aos ombros, acompanhada pelo servo de Deus e pelos religiosos que a seguiam, caminhando pelo claustro chegavam às portas que nele havia a pedir pousada para aquela Senhora próxima do parto e para o seu esposo que vinham de caminho; e chegando à primeira porta pedindo pousada cantaram esta letra que o santo compôs: “del Verbo divino…” e sua glosa e foi cantando às outras portas». A glosa sanjoanina a esta «letrilla» não chegou até nós (Cf. F. Ruiz, Introducción, p. 110). O Santo emocionava espiritualmente especialmente na celebração do Natal e na festa do Corpus Christi e representa estes mistérios cheio de alegria em comunidade. O Santíssimo Sacramento foi o centro da sua vida, nas celebrações litúrgicas e nas efusões pessoais. Celebrava a festa do Corpus, decorava paredes e quadros, passava longas horas de adoração contemplativa diante da grade do altar.

[10] LG 57.

[11] F. Ruiz, Introducción a San Juan de la Cruz, BAC, 1968, pp.150-153.

[12] «Esmerava-se muito na autoridade do culto divino. Tinha particular apreço e grande estima de todas as coisas da Igreja e de seu Pastor» (Pr 19).

[13] F. Ruiz, Introducción, pp. 153-155.

[14] Declaração de Maria da Paz, BMC 14, 45.

[15] «A Virgem-Mãe não cessa de gerar o Verbo» (S. Hipólito, De antichr., LXI). «Compreendo que a tua alma, ó Virgem Imaculada / Seja mais querida ao Senhor do que a divina morada / Compreendo que a tua alma, Humilde e Manso Vale / Possa conter Jesus, o Oceano do Amor!» (Santa Teresa do Menino Jesus, P 54, 3). Na linha dos Santos Padres, há também um nascimento do Verbo na alma do cristão pela fé no baptismo. «Ó pura, ó doce visão! É na minha alma que se realiza o grande, o sublime mistério, a nova incarnação!» (Isabel da Trindade, P 75, 4). «Recolhe-te, é na tua alma que o mistério se cumpre. Jesus, Esplendor do Pai, em ti se incarnou» (Id., P 86, 1). «Mestre adorado, procurais uma hóstia e quereis em vossa caridade perpetuar para sempre a vossa vida, incarnando entre a humanidade» (Id., P 91, 8). «Queridas tias, passastes um bom Natal? O meu foi delicioso, porque, reparai, um Natal no Carmelo é único; pela noite instalei-me no coro e foi lá que decorreu toda a minha vigília com a Santíssima Virgem esperando a chegada do divino Menino, que desta vez viria nascer não já no presépio, mas na minha alma, em nossas almas, porque é o Emanuel, o “Deus connosco”» (Ct 187). «Jesus, nascendo, fez nascer na minha alma a paz» (Teresa dos Andes, Ct 149).

[16] «Cada cristão, crendo, concebe Deus no seu coração» (S. Agostinho, Sermo 189, 3; PL 38, 1006). «Christi carnem fide concipit» (Id., Contra Faustum, PL 42, 490). «Segundo a carne, há uma Mãe de Cristo, mas segundo a fé, Cristo é o fruto de todos nós» (S. Ambrósio, In Evang. s. Lucas, II, 26). «O Logos nasce sempre de novo nos corações dos santos» (Epistola a Diogneto, século II). «O terceiro nascimento está no facto que Deus, todos os dias e a cada hora, de modo verdadeiro e espiritual, nasce mediante a graça e o amor numa alma boa» (Johannes Tauler, Predigten. Übertragen V. G. Hofmann, Einsieldeln, 1979, p. 13). «Quereis que o Verbo viva em vós, quereis que a Encarnação dê fruto em vós? Não há dois meios. O Espírito Santo fez nascer e crescer o Filho de Deus no seio da Virgem, pois bem, é ele ainda que o fará viver e crescer em vós» (Retiro do P. Fages, p. 161). Isabel da Trindade, que viveu profundamente o Mistério da incessante geração do Verbo no seio da Trindade e da sua vinda ao seio da humanidade na encarnação virginal (Jo 1, 14) e na vinda contínua à alma (NI 17; CF 17), esperou marianamente como uma encarnação do Verbo subjectivamente na sua alma: «Ó Fogo consumidor, Espírito de amor, “sobrevinde em mim”, a fim que se faça na minha alma como uma encarnação do Verbo: que eu lhe seja uma humanidade de acréscimo na qual Ele renove todo o seu Mistério» (Isabel da Trindade, NI 15). «Dame, Jesús mío, que te vea nacer em mí, y me olvidaré de tanta angustia» (M. de Unamuno, Diario, p. 828).

[17] S. Cirilo de Alexandria, Comentário sobre o Evangelho de S. João, Lib. 5, cap.2: PG 73, 751-754.

[18] S. Gregório de Nazianzo, Oratio 36, 350-351.354.358-359.

[19] Rm 1, 1-20.

[20] S. Macário, Hom. XXVI, 1.

[21] «Para João da Cruz todo o nome pessoal implica a pessoa real Deus-homem na totalidade do mistério: o Verbo ou Jesus, dizem ambos tudo» (F. Ruiz, Mistico, p. 126).

[22] Edite Stein, Obras selectas, p. 390.

[23] «O centro das suas alegrias e o gozo da sua esperança aqui na terra era a Santíssima Humanidade de Cristo. A sua devoção era terníssima» (Efrén de la Madre de Dios, San Juan de la Cruz y el misterio de la Santísima Trinidad en la vida espiritual, Zaragoza, 1947, p. 277).

[24] «A condescendência perigosa de Deus assinalada nos dois campos da busca de novas revelações (2 S 21, 6-7) ou de gostos e contentamentos sensíveis (2 S 21, 3) diante da Palavra definitiva e da ciência saborosa e suprema da Cruz, respectivamente (2 S 22, 3; 21, 3), fica superada e ultrapassada pela condescendência suprema e benévola e autêntica de Deus. Realmente, e este é o Evangelho de João da Cruz, não se pode pedir mais. (…) Cristo é, no dizer do Santo, o remédio para a busca de novas revelações e de consolações sensíveis: “põe os olhos só n’Ele”; “olha-o tu bem, que aí acharás já feito e dado tudo isso e muito mais n’Ele”; «olha ao meu Filho, sujeito a mim e sujeitado por meu amor e aflito e verás quantas te responde”; “olha-o a Ele… humanado e acharás nisso mais do que pensas” (2 S 22, 5-6). (…) Não há condescendência maior nem mais plena, nem mais verdadeira do que a própria Encarnação, redentora e salvadora do homem e glorificadora de Deus. A descida de Deus ao homem não pôde ser maior nem a subida do homem em Deus pode ser mais elevada» (J. Vicente, San Juan de la Cruz, Profeta enamorado de Dios y Maestro, Madrid, 1987, pp. 278. 280. 281).

[25] «Na vida espiritual não há uma nova época à qual chegar. Já está tudo dado em Cristo, que morreu, ressuscitou, vive e permanece para sempre. Mas há que unir-se a Ele pela fé, deixando que a sua vida se manifeste em nós, de modo que possa dizer-se que cada cristão é não já alter Christus, mas ipse Christus, ele mesmo Cristo» (J. M. Escrivá, Es Cristo que pasa, n. 104).

[26] S. Leão Magno, Homilia 32, 1.

[27] Edite Stein, Obras selectas, p. 224.

[28] Cântico espiritual, 36,10.

[29] Adversus haereses, IV, 34, 1: PG 7, 1083: «Omnem novitatem attulit, semetipsum afferens».

[30] Papa Francisco, Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, n. 11.

[31] O termo «encarnação» aparece 21 vez nos seus escritos; o verbo «encarnar» apenas 2 vezes (Cf. Concordancias, pp. 689-690).

[32] F. Ruiz, Introducción, p. 370.

[33] «A encarnação do Filho de Deus (tomada no sentido pleno em que João da Cruz a toma como encarnação redentora que culmina na ressurreição de Cristo segundo a carne (CB 5, 4), converte-se, é palavra que está continuamente a dizer, a proclamar o seu dito» (J. Vicente, San Juan de la Cruz, Profeta enamorado de Dios y Maestro, Madrid, 1987, p. 279).

[34] BMC 14, 25.

[35] BMC 14, 19.

[36] «Espero em Deus que há-de olhar pela sua família» (Ct 18). «Espero no Senhor que lha dará (consolação), animando-se a levar a sua peregrinação e desterro em amor por ele» (Ct 21).

[37] Usa três vezes o vocábulo «espera», 114 vezes o termo «esperança» e 134 o verbo esperar» (Cf. Concordancias de los escritos de San Juan de la Cruz, pp. 753-757).

[38] 1 S 13, 3; 1 N 13, 15; CB 20, 4. 9; 26, 19; 28, 4; D 164.

[39] 2 S 6, 1; 3 S 32, 4; 2 N 7, 7; 21, 3; CB 2, 7.

[40] F. Ruiz, Introducción, p. 166.

[41] P 4, 33-35.

[42] P 8, refrão e glosa 6.

[43] «Irei buscar a minha esposa / e sobre mim tomaria / suas fadigas e trabalhos / em que tanto padecia; / e para que ela vida tenha / eu por ela morreria / e tirando-a do lago / a ti ta devolveria» (Rom 7, 260-266).

[44] Só Maria é que, confiando na palavra do anjo – «o seu reino não terá fim» (Lc 1, 33) –, «espera contra toda a esperança» (Rm 4, 18), espera na palavra de Jesus: «ao terceiro dia ressuscitarei!» (Lc 9, 22). No Cenáculo, ao «ver» o Senhor, entendeu que o «seu reino não é deste mundo» (Jo 18, 36), que a «sua cruz era necessária para a sua glória» (Lc 24, 26). Maria, juntamente com os Apóstolos, ora e espera o Espírito Santo (Act 1, 14) e, com eles, no Espírito, gera os cristãos na morte e na ressurreição de Jesus (Rm 6), forma os cristãos (Gl 4, 19), que peregrinam na fé, na esperança e no amor ao Senhor ressuscitado. Deus nunca falta aos que n’Ele crêem, n’Ele esperam: «erguei as vossas cabeças, a vossa libertação está próxima» (Lc 21, 28). «Cur Deus homo!». Maria é a memória do Senhor na vida da Igreja, o evangelista da infância de Jesus.

[45] «No A. T. parece que Deus está a sonhar fazer-se homem, semelhante aos homens. Mas começa tudo ao revés: por fazer o homem à sua imagem e semelhança. (…) Mais ainda, parece que Deus está a jogar a ser homem e do jogo passa-se ao anúncio, à promessa firme de o ser verdadeiramente um dia. (…) No N. T., esses sonhos dourados e jogos divinos, cumprindo as promessas, se fazem carne, se fazem homem de carne e osso de Deus sonhador que desbordou o sonho e o jogo e por amor ao homem se fez e é homem para sempre: EMANUEL, Deus connosco. Tem um nome próprio e chama-se JESUS. N’Ele, no acontecimento CRISTO como acção salvadora e sacramento primordial de Deus culminam todos os desejos salvadores de Deus e dos homens. Encontram-se Deus e o homem» (J. Vicente, San Juan de la Cruz, Profeta enamorado de Dios y Maestro, Madrid, 1987, pp. 292-293).

[46] «Que Deus se faça homem, trate com os homens, more, fale, coma, beba com eles, que se assemelhe em tudo menos no pecado, tudo isto é o faz parte ou integra a condescendência, a synkatábase de Deus no seu mais puro florescimento» (J. Vicente, San Juan de la Cruz, Profeta enamorado de Dios y Maestro, Madrid, 1987, p. 279).

[47] Rm 4, 127-166.

[48] Rm 5, 167-202.

[49] Rm 6, 203-220.

[50] «Para que a amizade fosse mais estreita entre o homem e Deus, foi necessário ao homem que Deus se fizesse homem» (S. Tomás, Contra Gentiles, 4, 54).

[51] O princípio da semelhança de amor justifica a Encarnação do Verbo feito carne, porque rege o movimento descendente, livre e gratuito, do amor de Deus ao encarnar, e atrai a esposa na tensão da espera para alcançar a semelhança e a união de amor. «Aquele que é dignou-se vir até àquele que não é, para que este que não é se transforme ele também em Deus ou n’Aquele que É» (S. Luís Maria de Montfort, Tratado da verdadeira devoção à SS. ma Virgem, Edições Monfortinas, 3ª ed., 1987, p. 131». «Fez-se Filho do homem para que nós pudéssemos ser filhos de Deus» (S. Leão Magno, Sermo 6 in Nativitate Domini, 2-3, 5: PL 54, 213-216). «Fazendo-te pequeno, fizestes o homem grande» (S. Catarina de Sena, Or. XII). «Deus é tão pequeno como eu, eu sou tão grande como Deus» (Angelus Silesius).

[52] DV 13.

[53] Rm 7, 221-244.

[54] Rm 7, 245-266.

[55] S. Catarina de Sena, Ct 144.

[56] GS 22. «Que aproveita dizer que Cristo veio só na carne tomada de Maria, e não demonstrar que veio também na minha carne?» (Orígenes, Hom. Gn 3, 7). Neste sentido, podemos ser «mãe» de Jesus, gerando-o dentro de nós (Mt 12, 48-50), e «irmão» de Jesus, fazendo-o crescer em nós (Lc 2, 52).

[57] Rm 8, 267-286.

[58] Cântico evangélico (Magnificat) das Vésperas I do Natal do Senhor.

[59] No matrimónio espiritual, é o Esposo, Cristo Filho de Deus, que convoca “os anjos e as almas santas” para participarem da sua alegria, e chama à alma “sua coroa, sua esposa e a alegria do seu coração, trazendo-a nos seus braços e procedendo com ela como Esposo de seu tálamo” (CB 22, 1).

[60] GS 45.

[61] «Para que a amizade fosse mais estreita entre o homem e Deus, foi necessário ao homem que Deus se fizesse homem» (S. Tomás, Contra Gentiles, 4, 54). Deus escolheu o homem como seu próximo, amou-o e não o desprezou; em Jesus fez sua a humanidade, a carne e o tempo dos mortais. (…) Assim se manifestou Deus como próximo do homem mais distante, até partilhar o seu distanciamento, chegando até à sua morte e descendo até ao seu inferno» (O. González de Cardedal, Raiz de la Esperanza, p. 111).

[62] Prefácio do Natal II. «Cristo, aparecendo no mundo e, restituindo-lhe a sua harmonia original, encheu-o de esplendor e alegria» (S. Proclo, Oratio 7 in sancta Theophania, 1-3: PG 65, 758-759).

[63] II Hino de Laudes do Tempo do Natal.

[64] Prefácio do Natal III.

[65] S. Gregório Niceno, Orações dos primeiros cristãos.

[66] II Hino de Laudes do Tempo do Natal.

[67] «A pedra que aqui diz, no dizer de S. Paulo, é Cristo (1 Cor 10, 4). As subidas cavernas desta pedra são os subidos e altos e profundos mistérios de sabedoria de Deus que há em Cristo sobre a união hipostática da natureza humana com o Verbo divino» (CB 37, 3).

[68] «Assim como Cristo desceu do céu à terra, assim a sua esposa, a Santa Igreja, tem também a sua origem no céu: nasceu da graça de Deus e com o Filho de Deus desceu do céu, de modo que está unida a Ele indissoluvelmente. Foi construída com pedras vivas; a sua pedra angular foi colocada quando a Palavra de Deus assumiu a natureza humana no seio da Virgem. Nesse momento, a alma do Divino Menino e da Virgem Mãe estavam enlaçadas com o vínculo da mais íntima união, que hoje chamamos desposório» (Edite Stein, As Bodas do Cordeiro).

[69] «E na correspondência que há a esta da união dos homens em Deus, e nas conveniências de justiça e misericórdia de Deus sobre a salvação do género humano em manifestações dos seus juízos» (CB 37, 3).

[70] Fausto de Riez, Sermo 5, de Epiphania 2: PLS 3, 560-562.

[71] Rom 9, 287-310.

[72] «O Verbo de Deus não foi feito, visto que por Ele foram feitas todos os tempos; mas Cristo sim; Cristo, como homem, foi feito no tempo. Sabe-se sob que cônsul e em que dia a Virgem Maria deu à luz a Cristo, concebido por obra do Espírito Santo. Foi feito homem no tempo aquele por quem, como Deus, se fizeram todos os tempos» (S. Agostinho, Coment. in Ioann., p. 613).

[73] AG 3.

[74] «O Filho de Deus desceu até nós e quem pouco falava como Deus, começa agora a falar como homem. No entanto, é homem o mesmo que é Deus, porque Deus se fez homem; fez-se o que não era, sem deixar de ser o que era. Logo o homem uniu-se com Deus para que fosse homem o mesmo que era Deus, não para que fosse já não homem e não fosse Deus» (S. Agostinho, Coment. in Ioann., p. 553).

[75]  «Tudo dizia aos homens como homem; oculto como Deus e visível como homem para fazer deuses aos que evidentemente eram homens; e o que era Deus fez-se Filho do homem com o fim de fazer filhos de Deus aos que eram filhos dos homens» (S. Agostinho, Coment. in Ioann., p. 545).

[76] «E a alma mais parece Deus que alma e ainda é Deus por participação» (2 S 5, 7). «Está a alma feita divina e Deus por participação, quanto se pode nesta vida» (CB 22, 3). «Dado que Deus lhe faça mercê de a unir na Santíssima Trindade, em que a alma se faz deiforme e Deus por participação» (CB 39, 4). «Estando unida como está aqui com ele e absorta nele, é Deus por participação de Deus» (CH 2, 34).

[77] S. Leão Magno, Sermo 6 in Nativitate Domini, 2-3, 5: PL 54, 213-216.

[78] S. Leão Magno, Homilia 32, 1.

[79] Dionísio, Areopagita, Nomes divinos, II, 9.

[80] S. Máximo de Turim, Sermo 100, de sancta Epiphania 1, 3: CCL 23, 398-400.

[81] «Manifestou-se a graça de Deus que traz a salvação para todos os homens». Com estas palavras o Apóstolo anuncia o mistério do Natal, e exprime o que aconteceu na noite de Belém: decreto de recenseamento (Lc 2, 1-7) e nascimento. «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo 3, 16). A graça é a manifestação de Deus, a sua abertura aos homens, o tornar-se dom para os homens: é Deus, o Pai Nosso, o Filho de Deus e da Virgem, o Espírito Santo, que opera no coração dos homens com a riqueza infinita dos seus dons. É o Emmanuel, o Deus-connosco e o Deus para nós. A graça é o homem recriado novamente (Jo 3, 1-8) como filho de Deus (Jo 1, 12). A graça é Deus em nós e nós em Deus, em comunhão de comunidade, família, Povo de Deus e humanidade. É o dom de unidade no Espírito Santo. Cristo nasceu para nós renascermos para glória de Deus e paz na terra. Se há nascimento de Deus no homem (a Natividade, a condescendência e inhabitação divina na alma), há também nascimento do homem em Deus (a Ascensão, a anábase do homem na glória). «A encarnação acaba no mistério da ascensão: descendit et ascendit, desceu e subiu; baixou , mas subiu levando consigo a uma multidão» (Paul Bourgy, Teología y espiritualidad de la encarnación, Estela, Barcelona, 1968, p. 112. A ressurreição é o mistério eterno do nascimento do Filho manifestado ao mundo: “Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei» (Sl 2, 7; Act 13, 33). «A água do baptismo, pelo poder d’Aquele que foi baptizado por João, reconduz os mortos à vida» (S. Proclo, Oratio 7 in sancta Theophania, 1-3: PG 65, 758-759).

[82] S. Proclo, Oratio 7 in sancta Theophania, 1-3: PG 65, 758-759.

[83] Prefácio da Epifania.

[84] S. Pedro Crisólogo, Sermo 160: PL 52, 620-622.

[85] S. Hipólito Sermão sobre a santa Teofania, nn. 2. 6-8.10: PG 10, 854.858-859.862.

[86] Edith Stein, CC 317 nota 74.

[87] Edith Stein, Obras selectas, p. 381, onde remete para S. João da Cruz, que considerava a Encarnação como um desposório do Verbo de Deus com a natureza humana (CC 319 nota 76). De facto, «Deus… predestinou-nos para sermos seus filhos adoptivos por meio de Jesus Cristo» (Ef 1, 5). Na verdade, Deus quis que «recebêssemos a adopção de filhos» (Gl 4, 5).

[88] Edite Stein, CC 316. «Nosso Senhor, vencedor do pecado e da morte, não tendo encontrado ninguém isento de culpa, veio para nos libertar a todos… Alegre-se o pecador, porque lhe é oferecido o perdão» (S. Leão Magno, Sermo 1 in Nativitate Domini, 1-3: PL 54, 190-193). «Jesus manifestou-se para tirar os pecados e n’Ele não existe pecado» (1 Jo 3, 5). «Tomou sobre Si o pecado do mundo e expulsou o inimigo do mundo» (S. Proclo, Oratio 7 in sancta Theophania, 1-3: PG 65, 758-759). «Da doutrina do Santo podemos deduzir que, ainda que o homem não tivesse pecado, o Verbo teria encarnado a fim de lhe outorgar a deificação» (F. García Muñoz, Cristología de San Juan de la Cruz, Fundación Universitaria Española, Madrid, 1982, p. 73, nota 8).

[89] Edite Stein, O Mistério do Natal, 1.

[90] Edith Stein, O Mistério do Natal, 2. A liturgia da Igreja desenvolve o tema do mistério da luz de Natal: «Pela fé brilha em nossos corações a nova luz do Verbo encarnado» (Colecta da Missa da Aurora»; «Não esqueças que fostes libertado do poder das trevas e transferido para a luz do reino de Deus» (S. Leão Magno, Sermo 1 in Nativitate Domini, 1-3: PL 54, 190-193). «É a paz que gera os filhos de Deus, alimenta o amor e cria a unidade. Ela é o repouso dos santos e a mansão da eternidade. E o fruto próprio desta paz é unir a Deus os que separa o mundo… O nascimento do Senhor é o nascimento da paz» (S. Leão Magno, Sermo 6 in Nativitate Domini, 2-3, 5: PL 54, 213-216).

[91] C. García, Edith Stein, Una espiritualidad de frontera, p. 131.

[92] Edith Stein, O Mistério do Natal, 4.

[93] Edith Stein, O Mistério do Natal, 3.

[94] Edith Stein, O Mistério do Natal, 4.

[95] Edith Stein, O Mistério do Natal, 3.

[96] Edith Stein, CC 315.

[97] Edith Stein, CC 319.

[98] Edith Stein, O Mistério do Natal, 3.

[99] «Quando falamos de união da alma com Deus… falamos da união e transformação da alma com Deus… a qual é quando as duas vontades, a saber, a da alma e a de Deus, estão conformes no uno, não havendo numa coisa que repugne à outra. E assim, quando a alma tirar de si totalmente o que repugna e não conforma com a vontade divina, ficará transformada em Deus por amor» (2 S 5, 3). «O estado desta divina união consiste em ter a alma, segundo a vontade, com tal transformação na vontade de Deus, de maneira que não haja nela coisa contrária à vontade de Deus, mas em tudo e por tudo o seu movimento seja somente vontade de Deus» (1 S 11, 2).

[100] «A suma perfeição não consiste… mas em ter a nossa vontade tão conforme com a de Deus, que não entendamos Ele querer alguma coisa sem que a queiramos com toda a nossa vontade, e tomemos com a mesma alegria, tanto o saboroso como o amargo, como o quer Sua Majestade» (S. Teresa de Jesus, F 5, 10). «A perfeição consiste em fazer a sua vontade, em ser o Que Ele quer que sejamos» (S. Teresa do Menino Jesus, A 2 v).

[101] Edith Stein, O Mistério do Natal, 3.

[102] Crisógono de Jesús, San Juan de la Cruz, su obra científica y su obra literaria, em 2 vol., Madrid, 1929, (Obra científica), p. 331.

[103] Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Ct 145.

[104] Marquês de Argenson (1751).

[105] Walter Kasper, A Misericórdia – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã, Lucerna, Cascais, 2015, p. 179.

[106]J. Moltmann, O homem mistério a desvendar. (Ensaio de antropologia), Edições Paulistas, Apelação, 1976, p. 172.

[107] Lucien Marie, «Du désespoir à l’action de grâces», em  Revue Thomiste, 72 (1971) 288-299.

[108] VC 110.

[109] P 2, 11-14; 61-68, Romance sobre o salmo “super flumina Babilonis”.

[110] O Ausente é o verdadeiro protagonista de CB 1-12 (F. Ruiz, Mistico, p. 258).

[111] ««Não sendo como os que buscam a sua comodidade e consolação, ou em Deus ou fora dele; mas o padecer em Deus, e fora dele por ele em silêncio e esperança e amorosa memória» (Ct 16). «Já sabe, filha, os trabalhos que agora se padecem. Deus permite-o para prova de seus escolhidos. Em silêncio e esperança será a nossa fortaleza» (Ct 30). «Quando se lhe oferecer algum dissabor e desgosto, lembre-se de Cristo crucificado e cale. Viva em fé e esperança, embora seja às escuras, que nessas trevas ampara Deus a alma» (Ct 20).

[112] «A esperança é o desejo eficaz em que a certeza é, por um lado, segurança de que o amor se tornará aqui cada vez mais transparente sob o véu da fé e, por outro, a certeza de que esse véu um dia se romperá completamente. A esperança não é oura coisa senão a fé em seu devir ou o amor em busca do seu desenvolvimento» (G. Morel, Le sens de l’existence selon saint Jean de la Croix, II, Paris, 1960, p. 268).

[113] Oração depois da comunhão da Missa da Aurora do Dia de Natal.

[114] G. Bachelard, La rêve du vol, pp. 45-46.

[115] Oração Colecta da Missa da Meia-Noite.

[116] Oração sobre as Oblatas da Missa da Meia-Noite. As orações desta Missa acentuam esta permuta de dons: «Participação na vida divina do Filho que Se dignou assumir a nossa natureza humana» (Oração Colecta da Missa do Dia de Natal). Ainda: «Assim como nos comunicou a sua vida divina, nos faça também participantes da sua imortalidade» (Oração depois da comunhão da Missa do Dia de Natal).

[117]«Pelo mistério do Verbo Encarnado, nova luz da vossa glória brilhou sobre nós, para que, contemplando a Deus visível aos nossos olhos, aprendamos a amar o que é invisível» (Prefácio do Natal I).

[118] P 5, 3-5.

[119] S. Agostinho, Confissões, X, 43, 70.

[120] A união é um dom do amor de Deus a todo aquele que corresponde fielmente e sempre com um amor cada vez mais alto que nenhum outro o iguala ou impede. O Santo fala da «união com Deus em perfeita esperança» (3 S 1 tít. e 1), de «suma esperança de Deus incompreensível» (3 S 2, 3). A «união de Deus em esperança pura e inteira» (3 S 7, 1), «a união em esperança com Deus» (3 S 8, 2) exige a purificação da memória nas apreensões para se «unir com Deus em esperança» (3 S 7, 2).

[121] P 9, 1.

[122] 2 N 21, 6-9. 11-12.

[123] P 10, refrão e glosa 4.

[124] O homem é um indefeso pássaro atado (1 S 11, 4), a quem pesam demasiado as asas. Nasceu para voar verticalmente até às alturas (CB 39, 7). Deus, a águia real, convida e procura, desce até nós e une-se connosco na Encarnação, na Cruz, na Eucaristia. O nosso lance dar-se-á quando a força do amor nos elevar da terra e nos fizer voar livres na fé e na esperança.

[125] LG 48.

[126] S. Leão Magno, Sermo 1 in Epiphania Domini.

[127] S. Pedro Crisólogo, Sermo 160: PL 52, 620-622.

[128] LG 1.

[129] Cântico evangélico (Benedictus) de Laudes da Epifania do Senhor.

[130] S. Leão Magno, Sermo 3 in Epiphania Domini, 1-3. 5: PL 54, 240-244.

[131] S. Pedro Crisólogo, Sermo 160: PL 52, 620-622.

[132] Cântico evangélico (Magnificat) das Vésperas II da Epifania do Senhor.

[133] Edite Stein, Festa dos Reis Magos (1942).