Sobre a Amazónia, que está atualmente a sofrer um período de seca muito intensa, já tinha em mão muito informação para partilhar no Claustro. Entretanto, no sábado 7 de outubro, dia da Memória de Nossa Senhora do Rosário, acordámos todos com as notícias sobre o atentado do Hamas em Israel. O desenrolar dos primeiros comentários e imagens deixaramme sem voz. Meu Deus, mais um massacre… Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores… “Querida Amazónia”, a vida da nossa Terra está a sofrer noutro lugar: não te importas que esclareça mais tarde a tua sede de água e de paz?
Logo na noite de domingo, outras imagens se me impuseram na minha mente. A minha memória viajou até aos meus treze anos, frente à televisão a preto e branco que os meus pais acabavam de comprar. Durante o ano de 1961, vi grande parte das reportagens sobre o processo de Adolf Eichmann em Jerusalém. Este antigo oficial da Gestapo, raptado na Argentina pelos serviços secretos israelitas, em 1960, fora um dos principais responsáveis pela organização da deportação dos judeus europeus para os campos de extermínio.
Quinze anos depois do julgamento de Nüremberg, aquele foi o primeiro processo baseado em testemunhos de dezenas de sobreviventes dos campos, e foi amplamente difundido em todo o mundo pela rádio e televisão. Muitos adolescentes e jovens, sobretudo em Israel, na Europa e na América do Norte, descobriram então a organização minuciosa do aniquilamento sistemático dos judeus: a Shoah, a destruição, catástrofe, em hebraico, ou o Holocausto, termo anglo-saxónico mais usado em Portugal.
Muitos sobreviventes não conseguiram partilhar as suas memórias aquando do seu regresso. Na sociedade muita gente também não estava preparada ou disposta a ouvi-las. A Shoah foi considerada «indizível ou inaudível» nas primeiras narrativas divulgadas logo após a guerra. O abastecimento alimentar, a reconstrução e a busca de um novo equilíbrio emocional eram as preocupações prioritárias neste difícil pós-guerra. De tal modo que tenho recordações destes tempos, apesar da minha tenra idade.
O processo Eichmann e a descoberta da Shoah abriu-me bruscamente ao mundo dos adultos; foi um choque terrível para mim. Como foi possível?, perguntava ao meu pai com quem ficava a ver as reportagens do processo e os documentários sobre os campos. A minha mãe encontrava sempre outras ocupações, só mais tarde percebi que não gostava de recordar estes tempos. Acabado o processo e as reportagens, procurei saber mais sobre o extermínio dos judeus na Europa. Na época, só com revistas e livros, que se multiplicaram precisamente após o processo Eichmann. Ou no liceu público do centro de Toulouse, França, onde estudava e onde também cresceu a minha fé nas aulas de Instrução Religiosa e nos grupos da JEC.
Nasci, cresci, estudei nesta cidade – hoje multicultural e cosmopolita –, antes de emigrar para Portugal, em 1971, após o meu casamento com o Pedro. A minha família francesa também é multicultural, como muitas outras em França. Houve uma intensa mobilidade interna das pessoas no século passado, sobretudo durante e depois da crise mundial de 1929 e 2ª Guerra Mundial. O meu pai é oriundo das Ardenas, perto da Bélgica, e migrou para sul, ainda criança, com a família, nos anos 1930; a minha mãe nasceu numa aldeia (hoje vila) a sudoeste de Toulouse. Conheceram-se na aldeia durante a guerra, casaram em 1945, e instalaram-se em Toulouse, já repleta de refugiados de várias guerras europeias: judeus, espanhóis, italianos, polacos…
Ao longo da minha vida em Portugal, nunca deixei de me documentar sobre a Shoah. A partir dos anos 1980, surgiram obras fundamentais que comprava em França. Ainda vou comprando um ou outro, mas com menos frequência, já tenho tantos… Interessam-me mais agora as suas raízes antropológicas e filosóficas, procurando completar a resposta à pergunta «Como foi possível?» da minha adolescência. A cobertura jornalística do processo de Eichmann que fez a filósofa Hannah Arendt abriu uma polémica que ainda não acabou sobre a «banalidade do mal». Arendt descreve Eichmann como uma pessoa inteligente, mas repetindo sempre os mesmos clichés, um burocrata incapaz de pensar e julgar por si próprio. Um homem comum, banal, mas que cometeu crimes descomunais, sendo, portanto, culpado. Pelo contrário, uma biografia mais recente apresenta-o como um antissemita com fortes convicções políticas desde a sua juventude, disfarçado durante o processo.
E agora, depois do atentado descomunal do Hamas, depois dos bombardeamentos israelitas em Gaza, em que ficamos? Como a mesma «banalidade do mal»? Quem são os culpados? Não há uma responsabilidade coletiva no que se refere à situação no Médio-Oriente? A Shoah já passou, mas permanece como uma herança pesada na nossa memória. Talvez seja preciso libertar-nos do peso da herança para compreender o presente e procurar soluções para um futuro melhor.